[CONTO] O DIA EM QUE CONHECI MEU PAI PELA SEGUNDA VEZ

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Decidi conhecer meu pai. Já havia o conhecido muitos anos antes, mas agora será diferente. Não sou mais um menino assustado, tampouco sua figura me deixará sem palavras. Sei o que ele foi e quem ele é. Agora é a minha vez de mostrar quem sou eu.

Perguntando aqui e ali, numas férias em que passei na casa dos meus avós, descobri onde ele se esconde. Ainda é policial militar do estado do Piauí, mas também é sócio de um bar. Foi lá que escolhi aparecer. Não sei se aguentaria ficar com ele a sós.

Fui conhecê-lo pela primeira vez quando tinha oito anos. Ele mal havia me visto nascer e já nos abandonara. Minha mãe decidiu que eu já estava virando um rapazinho e devia conhecer o homem que contribuiu para que eu viesse ao mundo. Ele foi embora, mas nunca esteve muito longe. Morava a poucos quilômetros de nós, numa cidade vizinha, e estava lotado em um batalhão desta mesma cidade. A família dele nunca nos procurou. Minha mãe achou melhor ir até o batalhão, onde o encontro seria breve e teria testemunhas. Era medo. Eu sabia.

Ele era o tipo de homem que não esquentava a cama de mulher nenhuma, mas gostou da minha mãe. Ela, moça caseira, filha de pessoas honestas, jamais se envolveria com um homem como ele, mas se apaixonou. Casaram-se. Pouco tempo depois, esperavam por mim. Desde então, ele resolveu que não queria mais filhos, pois já tinha vários, em várias cidades… Também não queria ter uma família conosco. Na verdade, já tinha passado da hora de ele ir embora dali.

Eu nasci e tive uma ótima família. Meus avós, minha mãe, minha tia… Todos estavam lá nos momentos em que precisei. Mas nunca tive o meu pai.

Certa vez, perguntei para minha mãe por que eu não tinha pai. Ele havia morrido? Não sabia nada dele, só que o chamavam de nomes indizíveis e o desprezavam. Mesmo assim, minha mãe disse que, se eu quisesse, ela me levaria para conhecê-lo. Fomos.

O dia estava quente, e o batalhão era no fim de um longo caminho. Minha mãe segurava a minha mão com muita força. Eu também estava com medo. Ia conhecer o meu pai.

No batalhão, já éramos esperados. Fomos anunciados, e um homem veio caminhando lentamente até nós. Era ele, eu tinha certeza. Aproximou-se, mas não falou nada. Olhou rapidamente para mim. Seus olhos logo encontraram os da minha mãe e lá repousaram. Olharam-se por um instante, que pareceu uma eternidade. Havia anos que ela não o encontrava. Desconfio que ela também não o conhecia, nunca deve tê-lo conhecido de fato. Mas há muito tempo perdera a vontade de conhecê-lo. Um simples e tímido cumprimento foi o breve diálogo entre eles. Mas aquele olhar, aquele, sim, disse muito mais do que qualquer palavra poderia dizer.

Não me lembro de nada que ele disse, e a minha mãe não esteve junto a nós para ouvir a conversa. Ela me esperou na porta do batalhão, enquanto eu era apresentado aos colegas de farda do meu pai, lá dentro. Achei aquele lugar incrível! Meu pai estava para ser promovido a Sargento, e muitos já o respeitavam como tal. Muita gente quis me conhecer e falar comigo. Senti-me importante porque meu pai o era.

 

***

 

Depois daquele dia, nunca mais o vi. Pensei até que havia sonhado com esse encontro, mas a minha mãe garante que não foi sonho. Nós realmente estivemos lá.

 

***

 

Eu precisava vê-lo de novo. Não sei por que, mas precisava. Fui ao bar. Entrei, sentei, pedi uma cerveja. Já era adulto, mas estava nervoso. Ele estava no balcão, não me viu. Confirmei com o cara que me trouxe a cerveja. Era realmente o meu pai no balcão. Tive vontade de ir embora. Nesta altura da vida, o que eu esperava ter dele? Pensei muito, os segundos pareciam horas. Eu estava ali. Não podia ir embora antes de falar com ele.

Também sou policial agora. Não sei se aquela visita ao batalhão me influenciou (ou se foi uma inclinação natural e, neste caso, trágica de seguir a profissão do meu pai), mas entrei para a corporação, no Rio de Janeiro, há pouco tempo. Sou Soldado. Ele, pela idade, já deve ser Primeiro Tenente. Arranjei uma arma emprestada só para ir vê-lo.

Foi tudo muito rápido. Ainda hoje, parece que, nas duas vezes, eu sonhei ter conhecido o meu pai. Levantei-me da cadeira e fui caminhando lentamente até o balcão. Parei de frente para ele. Olhou-me e não me reconheceu. Confirmei uma vez mais se realmente era meu pai. Disse o meu nome. Então as coisas passaram a fazer sentido para ele. Em um movimento repentino, ele pulou o balcão e me abraçou. Não sei se eu consegui abraçá-lo de volta, mas ele ficou ali, me abraçando.

Voltei para a mesa, agora com o meu pai. Conversamos sobre várias coisas. Falei para ele que eu também era policial, Cabo, quase Sargento; que tudo tinha dado certo para mim e que eu vivia muito bem. Ele me falou da família, dos muitos filhos e do arrependimento de não ter me procurado depois daquele dia no batalhão.

Perguntou-me pela minha mãe. Menti que ela havia se casado novamente, que era muito feliz e tinha mais três filhos. Ele não pareceu acreditar. Ele devia conhecer mais do que eu supunha a mulher com quem se casara há muito tempo.

Apresentou-me para todos como o seu filho, que também era policial. Simplesmente um orgulho! Aquilo me irritou. Esforcei-me para não deixar transparecer. Ele em nada havia contribuído para que eu estivesse ali, homem feito, pessoa de bem. Por ele, eu nem teria nascido!

Prometi voltar sempre nas férias para também para visitá-lo, agora que nós tínhamos nos conhecido de verdade, e ele morava tão perto dos meus avós. Quinze anos depois, soube de seu falecimento.

 

 

*** Este conto participou do Concurso de Contos DEZCONTOS (2015), do curso de Letras do Polo Cederj Itaperuna, ficando na oitava colocação. Ele narra uma história real; foi o meu pai quem decidiu conhecer o pai dele pela segunda vez. O que eu fiz foi unir as versões dele e da minha avó sobre o ocorrido, com uma pitada de imaginação.

 

[ATUALIZAÇÃO 30-11-2017]: O Dia virou livro e está disponível em e-book na Amazon neste link.

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Danni Silvaa
Danni Silvaa
18 de fevereiro de 2016 14:51

Oi
Que conto emocionante.
Me emocionei com a história e confesso que ainda acontece isso na nossa realidade.
Parabéns por esse conto 🙂
bjs
ldsonhos.blogspot.com

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Andréa
18 de fevereiro de 2016 15:50

Olá Tamires!

Parabéns pelo conto! Está muito bem escrito, e muito bem feito. Me prendeu a atenção. É profundo, mesmo sendo uma história breve, comove. Meso falando pouco, diz muito sobre a vida, causa e efeito, arrependimentos. Continue escrevendo, você o faz muito bem!

Bjus
http://www.fundofalso.com

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Caroline Freitas
18 de fevereiro de 2016 19:39

Oi Tamires,
Primeiramente meus parabéns o conto reflete não só a realidade do seu pai, mas de muitos jovens que não conheceram os pais ou conheceram só que não o tiveram por perto. Seu conto é de uma simplicidade e com muitos sentimentos, a ler você percebe a mágoa do rapaz e arrependimento do pai. Quando você narrou que ele pegou a arma pensei que ele ia fazer besteira. Seu conto me prendeu do início ao fim. Beijos!

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Driely Meira
Driely Meira
18 de fevereiro de 2016 21:28

Oiee ^^
Que conto mais lindo! Fiquei abismada quando você disse que é uma história real (misturada com imaginação). Não conheço ninguém que não tenha crescido com o pai ou o conhecido assim, após anos e anos de abandono, mas já li diversas histórias sobre isso, e elas sempre conseguem me deixar triste :/ Não consigo imaginar como deve ser estar no lugar dessas pessoas.
MilkMilks
http://shakedepalavras.blogspot.com.br

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Nathalia Simião
Nathalia Simião
19 de fevereiro de 2016 16:16

Caramba Tamires, eu estou realmente sem palavras. O seu conto é muito bom! É bonito, é triste, é de deixar sem reação. Ao mesmo tempo que imagino saber o que o filho sente, que é horrível ser abandonado e isso se transforma em raiva da pessoa, penso que o pai talvez deveria ter recebido as visitas nas férias. Não sei, talvez as coisas tivessem se acertado. É só um pensanmento. Saber que é uma história real, que aconteceu com seu pai, uau. Deve ter sido uma barra.
Parabéns, conto muito bom mesmo!

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Nati
19 de fevereiro de 2016 18:38

Olá Tamires.

Parabéns pelo seu conto, está lindo, sensível e cheio de emoção.
Esse momento de reconhecer uma pessoa que você já conhece é sempre um momento tocante, seja pro bem ou pro mal.
Parabéns!

Beijos

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Sammy
19 de fevereiro de 2016 22:26

Apesar de ser um conto, a história é muito envolvente e comovente. Fiquei encantada por ser uma história real, a qual você transpareceu em conto. Fiquei tocada pela história, acredito que muitos leitores vão se identificar, pois é algo que acontece com muitos, felizmente tive um bom pai e sinto por ele não estar mais aqui, mas assim mesmo, achei boa sua escrita, você deve investir nessa carreira! 😀

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Déborah Araújo
20 de fevereiro de 2016 14:44

Tamires, sério que ficou só em oitavo lugar?
O conto é muito bom mesmo.
Bem escrito e mexe com a gente.
Fiquei encantada pela sua escrita. Conseguiu me envolver mesmo.
Lindo demais.

Lisossomos

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João Victor
João Victor
27 de fevereiro de 2016 23:23

Oi, Tamires
Parabéns pelo conto!
Infelizmente, situações como essa ainda são muito comuns na nossa sociedade. É uma história bonita e triste ao mesmo tempo.
Confesso que na parte do “Arranjei uma arma emprestada só para ir vê-lo. […]” eu pensei que aconteceria alguma coisa trágica kkk

Beijo,
João Victor – All POP Stuff | De cabeça para baixo

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[…] Conto publicado originalmente em http://www.tamiresdecarvalho.com/conto-o-dia-em-que-conheci-meu-pai-pela-segunda-vez/ ​ […]

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[…] Já está disponível em e-book na Amazon O dia em que conheci meu pai pela segunda vez! Esse foi o primeiro livro que eu escrevi, e ele foi inspirado nos causos de polícia do meu falecido pai. Inclusive, a primeira postagem aqui do blog foi do conto que dá nome ao livro. […]

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