[DIÁRIO DE LEITURA] JÚLIA LOPES DE ALMEIDA EM 1908 FALA DE QUESTÕES AINDA ATUAIS, COMO SEGURANÇA PÚBLICA E FRAGILIDADE DA JUSTIÇA

A autora Júlia Lopes de Almeida. Fon-Fon!, n. 40, p. 37.

 

Sábado acordei ouvindo o barulho da chuva e logo uma doce alegria se espalhou pelo meu espírito à ideia de que os gramados do meu jardim e as árvores do meu pomar, tão abrasadas pela míngua d’água em que têm crescido, tinham enfim para ressuscitar-lhes as fileiras semimortas um rega salvadora. A verdade, para mim solenemente triste, é que morando eu a cinco minutos da Carioca[1], seja a minha casa fornecida de água só das 5:30 ou 6 horas até as 9 e pouco da manhã, e isso mesmo pó um encanamento de tão pequeno diâmetro, que a água não tem pressão que a faça subir até o alto das chácaras dos meus vizinhos nem da minha, onde vicejariam espinafres e alfaces e assim não floresce nem um mísero pé de couve.

Este assunto não interessa ao leitor, mas interessa-me a mim e não é demais que, ao menos uma vez na vida, eu propugne aqui pelos meus interesses de munícipe apaixonada por violetas e morangos. Hortaliça também. Quem não gosta de couve-flor? Imaginemos que todos os quintais do Rio transbordavam de lindas flores, saborosas frutas e delicadas verduras e veríamos talvez mudada a nossa feição melancólica em aparência satisfeita e risonha. Valha-nos do dr. Sampaio Correia[2], que se quiser mandar verificar à estrada da carril de Santa Teresa a razão desta queixa, que faço constrangida, acha-la-á justa. Perdi da memória o número de vezes que fui ao escritório das obras públicas pedir ao seu antecessor remédio para um mal que sofremos sem culpa, visto que satisfazemos todas as contribuições do estilo.

É como a polícia. Se souberem por aí que fui assassinada com toda a minha família a horas mortas da noite por ladrões iludidos na sua boa-fé, ninguém estranhe o caso, porque as patrulhas, coitadas, têm medo de rondar o sítio isolado e trevoso em que nós e os nossos vizinhos (reparem que não sou egoísta e nunca aludo a mim só) nos lembramos de assentar acampamento. Compreendo que não deva ser agradável caminhar um sujeito para trás e para diante num caminho que escorrega de um lado em ribanceiras de que podem emergir vultos inesperadamente, e do outro as raras casas sejam intervaladas por mato híspido igualmente favorável às esperas para o assalto. É um estado de alma compreensível.

De resto, a brava ronda, certa da valentia geral, deixa aos moradores da estrada o cuidado de defenderem a sua vida e a sua propriedade a revólver. Por mim, tenho feito constar por toda a redondeza que sou capaz de matar um tico-tico que voe a mais de quinhentos metros acima de minha cabeça. Parece-me que acreditam.

Neste sentido recebi da mais impressionável das minhas amigas um conselho original e que cedo a quem o quiser: o de mandar fazer algumas figuras de cera, com olhos iluminados por lamparinas internas, e postá-las todas as noites na varanda e no terraço, de armas engatilhadas para o jardim. Um fio elétrico… Mas a explicação desse maquinismo levar-nos-ia muito longe, e nem ele é necessário em um país em que quase toda a gente anda armada, infelizmente. Infelizmente, sim, porque quantos e quantos crimes são cometidos sem premeditação, só pelo recurso que em um momento de desvario impulsivo um indivíduo encontra na faca pontuda que traz oculta na cava do colete, ou no revólver carregado que lhe pesa no bolso traseiro das calças! Além de ser esse um hábito covarde de que todo o brasileiro deve ser libertar, é um hábito perigoso, e que de um momento para o outro o pode transformar na mais desgraçada das criaturas. Todos os assassinatos executados com armas usadas pelos assassinos devem ser considerados, sejam quais forem as suas atenuantes, com a agravante da premeditação. Ninguém carrega um objeto mortífero consigo sem um interesse ou uma ideia qualquer, a não ser que esses objetos sejam (como os longos alfinetes dos chapéus das senhoras) objetos de uso particular.  E aí estão umas armas que ninguém conta… pelo menos os que ainda não viram a Theodora[3], de Sardou. Felizmente, estes constituem a maioria.

Não costumo ler jornais estrangeiros, a não ser revistas de arte, nem posso, portanto, imaginar se o número dos nossos crimes se iguala ou excede o de outros países em que o uso das armas não seja tão comum, ou em que a benevolência dos júris não seja tamanha como aqui, onde os criminosos de certa posição, contando com a impunidade certa, levam a efeito os atos de maior atrocidade ou de mais feia culpa. Todavia, exatamente os criminosos de melhor posição social, deveria a justiça punir com mais desassombro, porque eles não têm a desculpá-los nem a ignorância que brutaliza os homens, nem a fome, que alucina todo o animal, irracional ou não. Condenar um ladrão de botas rotas ao cárcere e deixar passear o outro de botas de verniz reluzente pelos salões; segregar do convívio da sociedade um assassino analfabeto e desamparado, para consentir que outros assassinos bem-vestidos circulem pelas ruas, se misturem à gente honesta, cortejando moças inocentes ou intervindo em negócios públicos, é fato que bradaria pela justiça, se além de cega ela não se tivesse também feito surda.

Este drama de São Paulo, vibrado entre as paredes do próprio Tribunal com inconcebível audácia, que dolorosas surpresas nos trará, a nós todos, que nos interessamos pela perfeição moral dos nossos costumes e da nossa raça?

A propósito de raça: ninguém imagina a inveja que o lindo artigo de Alfredo de Mesquita[4], publicado sexta-feira nesta folha, provocou em meu espírito, não pela minha, mas pela sorte de minhas filhas, comparada à das meninas americanas. A alegria, a atividade, o desembaraço dessas lindas criaturas teriam também as nossas, se os homens brasileiros consentissem nisso. Eu não admiro a mulher americana, admiro o homem americano que não se opôs a que ela se individualizasse e tomasse os ares de independência que seriam tidos ainda entre nós como escandalosos, e são, entretanto, mais inocentes do que os das sociedades hipócritas. Aqui o homem ainda é um inimigo da mulher. Lá é um irmão. É só essa a diferença. Mas a ocasião agora não é para estudos comparativos das sociedades, mas para estudos comparativos do nosso progresso material e artístico. Ainda no último sábado, em um dos salões do rés do chão do almirantado, passei uma hora interessantíssima, vendo ao lado de primorosas reproduções de vários dos nossos navios de guerra, que fazem parte do museu naval, pequenos modelos de embarcações brasileiras de todo o gênero, desde as canoas dos índios, agudas como lançadeiras, destinadas a cortarem as águas dos rios e a se despenharem pelas cachoeiras fragosas; desde as jangadas e as balsas do norte, que se unem à terra durante o dia e deslizam à noite para o meio das águas, fugindo ao ataque das onças bravas; desde o que há, enfim, de mais primitivo no país, até o que se faz modernamente de mais aperfeiçoado. O interesse por essa exposição[5] pitoresca e curiosa cresce com a ideia de que ela é o berço de uma escola marítima como talvez não haja outra igual em todo o mundo. Não cabe neste fim de crônica ligeira falar de intuitos tão patrióticos e tão complexos, os quais, estou certa, encontrarão no governo o apoio que tudo facilita. O que é preciso é que, ao desejo de realizar obra tão importante, junte o seu iniciador, dr. João Marques, a tenacidade, que é a maior força conquistadora…

25 de agosto de 1908

[1] Situado no centro antigo da cidade, o largo da Carioca está próximo à Santa Teresa, bairro em que a autora residia.

[2] José Matoso de Sampaio Correia (1875-1946), engenheiro, empresário e político fluminense, era na época inspetor-geral de Obras Públicas do governo de Afonso Pena.

[3] Victorien Sardou (1831-1884), dramaturgo francês, reconhecido por suas comédias, entre as quais Theodora, encenada pela atriz francesa Sarah Bernhardt.

[4] Jornalista, escritor e diplomata português, Alfredo de Mesquita (1871-1903) trabalhou no Jornal do Commercio, no Diário de Notícias e na revista O Ocidente. Escreveu biografias, ensaios literários, contos, teatro, literatura de viagens e um romance.

[5] Referência provavelmente à Exposição Nacional de 1908, inaugurada no dia 11 de agosto em comemoração aos 100 anos da abertura dos portos: ocupou dezenas de prédios públicos e pavilhões, muitos dos quais construídos especialmente para o evento.

 

 

Crônica retirada do livro Dois dedos de prosa: o cotidiano carioca por Júlia Lopes de Almeida (foto acima). Cadernos da Biblioteca Nacional, Vol. 16, organizado por Angela di Stasio, Anna Faedrich e Marcus Venicio Ribeiro.

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