[RESENHA] A PAIXÃO SEGUNDO G. H., DE CLARICE LISPECTOR

[RESENHA] A PAIXÃO SEGUNDO G. H., DE CLARICE LISPECTOR

Sinopse: “Romance original, desprovido das características próprias do gênero, A paixão segundo G.H. conta, através de um enredo banal, o pensar e o sentir de G.H., a protagonista-narradora que despede a empregada doméstica e decide fazer uma limpeza geral no quarto de serviço, que ela supõe imundo e repleto de inutilidades. Após recuperar-se da frustração de ter encontrado um quarto limpo e arrumado, G.H. depara-se com uma barata na porta do armário. Depois do susto, ela esmaga o inseto e decide provar seu interior branco, processando-se, então, uma revelação. G.H. sai de sua rotina civilizada e lança-se para fora do humano, reconstruindo-se a partir desse episódio. A protagonista vê sua condição de dona de casa e mãe como uma selvagem. Clarice escreve: “Provação significa que a vida está me provando. Mas provação significa também que estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.” Nova edição do de um dos mais conhecidos romances de Clarice Lispector, agora com projeto gráfico de Victor Burton e capa criada a partir de pinturas da própria Clarice. Esta edição traz posfácio do cineasta Luiz Fernando Carvalho que adaptou o texto para o cinema.”

 

Não sei se sou exatamente uma pessoa “de alma já formada”, como Lispector desejou que fossem os possíveis leitores de “A paixão segundo G. H.”, romance publicado originalmente em 1964. Mas aceitei o desafio de mergulhar neste livro, de acompanhar o intenso fluxo de consciência de uma mulher que perdeu; que se perdeu para conseguir se encontrar. Por mais que possa parecer um lugar comum essa definição, “A paixão segundo G. H.” é um mergulho naquilo que temos de mais humano.

Eu não sabia muito sobre o romance quando iniciei a leitura. Apenas alguns comentários esparsos vistos na internet ou algumas lembranças de aulas do curso de Letras. Eu sabia que tinha uma situação com uma barata. E que a protagonista, diziam, come a barata (até a sinopse do livro sugere isso!). Mas o que eu encontrei neste primeiro romance que li de Clarice e amei , é muito maior do que todas as interpretações apressadas (ou ligeiramente incorretas, se é que podemos usar esse conceito em literatura) que ele já recebeu e ainda receberá.

“A paixão segundo G. H.” é um livro incomum. Sendo assim, o que você pode encontrar em resenhas ou comentários sobre a obra é a motivação ou não , para ler o romance. Cada leitor terá sua experiência única com G. H., o que ultrapassa qualquer tentativa de sintetizar essa obra. (aqui você pode dizer que toda leitura é única etc., mas, acredite: G. H. é mais). Para não dizer que eu não tentei fazer um breve resumo, vamos lá:

G. H. é uma mulher burguesa da qual sabemos apenas a sigla de seu nome (“G. H. até nas valises”). Certa vez, sua empregada negra vai embora e ela resolve limpar o quarto de serviço, que julgava estar terrivelmente sujo. Mas não estava. Pelo menos não da forma que ela pensava. A empregada, Janair, fez um “contorno a carvão de um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão que era mais nu do que um cão” (p. 37). Uma figura “rupestre” que choca G. H., tamanha veracidade da pintura, tamanho ódio que expressa.

G. H. só se dá conta da existência real de Janair ao ver a pintura deixada por ela na parede. Ela tem dificuldade, inclusive, em lembrar do rosto da empregada. Este é um tema forte e, infelizmente, ainda extremamente atual no Brasil: a figura da empregada negra invisível por todo o tempo em que trabalhou na casa da “madame”, o “quartinho da empregada”, ainda presente não só nos lares luxuosos, como também nos de classe média e daí por diante.

E tem a barata. A barata que G. H. encontra no armário vazio do quartinho da empregada. A barata que foi espremida, liberando sua gosma branca e amarela; íntima e profunda matéria de seu ser. Mas não falarei muito sobre a barata; recomendo fortemente ler o livro!

Estive ouvindo o podcast do Página Cinco, do Rodrigo Casarin e um dos convidados do episódio “#62 – Por que amamos Clarice”, o crítico literário Manoel da Costa Pinto, disse que uma interpretação possível para G. H. é que essa sigla poderia representar, simplesmente, “Gênero Humano”. Assim, teríamos “A paixão segundo o Gênero Humano”. Forte, não é?

A Paixão aqui, vale ressaltar, também pode associar-se ao estado/processo de sofrimento da personagem até chegar a um estado de graça (sim, algo como a Paixão de Cristo). Uma espécie de mergulho profundo em si própria (e, como leitores, em nós mesmos).

Quero fazer (mais) um parêntese (eu gosto, dá para perceber!) para relacionar “G. H.” a outras duas leituras que fiz e que conversam lindamente com o livro de Clarice: “Dias de abandono”, de Elena Ferrante (que também ama Clarice!) e o conto “A marca na parede”, de Virginia Woolf. No livro de Ferrante, acompanhamos a jornada de uma mulher para se refazer. Ela precisa submergir após um longo e intenso mergulho emocional ao ter sido abandonada sem mais nem menos pelo marido, interrompendo, dessa forma, um relacionamento de anos. Já em Woolf, a personagem irrompe em um fluxo de consciência a partir de uma marca que vê na parede. Falei um pouco mais sobre esse conto aqui neste post.

Um aspecto interessante e recorrente na obra de Clarice é a subversão que ela faz da linguagem, da ortografia. Falando especificamente de G. H., a autora repete as últimas sentenças do final de um capítulo logo no capítulo seguinte. Também termina períodos com dois pontos (sabe fôlego contido? Essa sensação!). Mas, não seja purista e não se preocupe: faz todo o sentido no contexto da narrativa. Se você travar um pouco por este motivo, sugiro ler alguns trechos em voz alta (ou o livro inteiro, fique à vontade!). Simplesmente poético!

 

“Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.”

 

 

Título: A paixão segundo G. H.

Autora: Clarice Lispector

Editora: Rocco

Páginas: 192

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