[RESENHA] NENHUM OLHAR, DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO

Sinopse: “O cotidiano de uma vila rural do Alentejo é matéria para o aguçado olhar de José Luís Peixoto sobre o sofrimento humano. Os amores, as traições, a violência, as mortes e o luto atravessam o dia a dia dos personagens, que ganham voz nos múltiplos narradores, aproximando o leitor de sentimentos muito vivos. A cozinheira, o serralheiro, o pastor: eis a história de duas gerações, no livro vencedor do Prêmio José Saramago, que colocou Peixoto entre os mais importantes escritores contemporâneos. No espaço de um ano, entre 2000 e 2001, o autor lançou Morreste-me, este Nenhum olhar e A criança em ruínas. Entre poesia, memória, narração e ficção, em diferentes doses em cada volume, esse trio parece anunciar temas, olhares, formas de expressão e espaços que, com mais ou menos evidência, viriam a surgir na sua obra. Essa espécie de trilogia na obra de José Luís Peixoto atravessa gêneros e funda não só uma literatura, mas um universo. Agora, com esta reedição de Nenhum olhar, as três estreias do autor estão finalmente reunidas no Brasil. “Não é só ao emprestar poesia para a alma bruta dos personagens às voltas com a morte, o adultério, a ideia de família, que Nenhum olhar dribla o realismo cru. Surge, neste romance tecido por variados pontos de vista, a potência imaginativa de José Luís Peixoto que mistura com simplicidades cotidianas um homem com mais de cento e cinquenta anos, um gigante, o demônio, uma cadela que acompanha duas gerações da família, uma voz presa em uma arca e uma galeria de personagens inusitados que podem ser lidos como metáforas, ou como parte de uma realidade que nos escapa.” Reginaldo Pujol Filho.”

 

Quando terminei de ler Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez, eu fiquei um bom tempo pensando: como é que esse livro, de realismo mágico, com personagens tão incomuns e acontecimentos tão desconectados da minha realidade pode dizer exatamente uma coisa que eu sinto e não sabia que sentia antes de ler? Pode parecer estranho começar a falar de Nenhum Olhar, do escritor português José Luís Peixoto, evocando outra leitura, que fiz há muito mais tempo, de um escritor colombiano. Pode parecer, mas não é. Só confirma um dos vários poderes que a literatura tem: nos transportar a outro lugar, outro tempo e nos permitir, com isso, olhar para dentro de nós mesmos.

Nenhum Olhar (e também Morreste-me e A criança em ruínas) preciso dizer, fazem parte da belíssima Coleção Gira, da editora Dublinense, com curadoria de Reginaldo Pujol Filho, dedicada às escritas contemporâneas em português não brasileiro, pois a língua portuguesa não é uma pátria, é um universo que guarda as mais variadas expressões.

 

“Tem aquela frase de Proust que talvez já comece a se tornar um lugar-comum: ‘Os mais belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira’. O escritor, esse deslocado, inadequado, como criador de uma língua própria, única. Lugar-comum ou não, é uma afirmação precisa. E sempre me vem à mente quando penso sobre ler autores de língua portuguesa não brasileiros. Parece que na leitura de José Luís Peixoto essa descoberta de outra língua na minha se torna mais evidente e estranha. Perceber que, com o mesmo dicionário e a mesma gramática, se faz outra língua. E este prazer (que encontro não só em Peixoto) me move a ler a produção contemporânea de outros países que têm o português como idioma. Prazer que agora virou missão: a partir deste Morreste-me, junto com a Dublinense, vou dividir com você o prazer de ler autores de Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde e Guiné.” (Reginaldo Pujol Filho no livro Morreste-me, de José Luís Peixoto)

 

Nenhum Olhar é, sem dúvida, um dos melhores livros que eu li na vida. Vencedor do Prêmio Saramago em 2001, é um livro que não se pode resumir, apenas pincelar alguns trechos e características mais marcantes, porque não se resume poesia, não se resume sentimento. Nenhum Olhar é o que comumente chamamos de prosa poética, como se a poesia só pudesse existir dissociada da prosa, e vice versa. Aqui a gente percebe que o texto pode ser tudo isso ou outra coisa, não há limite ou termo técnico que defina plenamente este livro.

Vários narradores nos conduzem entre as histórias sobre a vida em uma pequena vila rural do Alentejo. Neste lugar, o real coabita com o fantástico para mostrar o que temos de mais humano: o amor, força e fraqueza, a solidão e o luto, dentre tantas outras coisas com as quais somos atravessados ao longo da vida. Os personagens não poderiam ser os mais incomuns: um demônio, um gigante, a cadela que vive além do normal, uma voz presa dentro da arca, um homem com mais de 150 anos, uma prostituta cega, uma cozinheira… Gosto do que Reginaldo Pujol Filho diz na orelha deste livro: “uma galeria de personagens inusitados que podem ser lidos como metáforas, ou como parte de uma realidade que nos escapa”.

Nenhum Olhar é um livro que continua comigo, mesmo depois de passados vários dias desde que li a última página. Gosto de tê-lo por perto, reler alguns trechos, mergulhar novamente em suas páginas. São personagens que, sinto, viverão para sempre comigo. Espero que eles possam, também, encontrar cada vez mais leitores.

 

“Penso: os homens são ovelhas que não dormem, são ovelhas que são lobos por dentro.” (p. 10)

 

“Essa voz abafada falava solene como se estivesse a ler uma epopeia de um livro, disse: talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique.” (p. 27)

 

“Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros.” (p. 29)

 

“Ainda que o peso do meu peito seja custoso, qual é o peso de um abismo?” (p. 38)

 

“Mesmo que seja para sofrer sofrer, tenho de ir ao encontro daquilo que serei, por ter sido isto e não poder fugir, não poder fugir de me tornar alguma coisa.” (p. 38)

 

“Penso: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens não sejam feitos de escuridão, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem.” (p. 50)

 

“Penso: um homem é um dia, um homem é o sol durante um dia. E é preciso continuar.” (p. 113)

 

“Penso: sempre e nunca mais são o mesmo lugar.” (p. 115)

 

“E, de repente, a voz que está fechada dentro de uma arca disse: o vento passa e permanece nas folhas que ainda tremem depois dele; nenhum homem pode deter o vento, porque todos os homens são uma parte do vento.” (p. 136)

 

“Penso: o lugar dos homens é uma linha traçada entre o desespero e o silêncio.” (p. 179)

 

“Penso: chega devagar, mas vem; aproxima-se e será um dia infinito, uma noite eterna, um instante parado que não será um instante; e os assuntos grandes serão menores que os mais ridículos, e os assuntos maiores serão ainda maiores porque serão únicos. Penso: é hoje.” (p. 215)

 

“Não tenho medo das palavras. Vê como digo morte: morte morte morte morte morte. Repito-a assim e roubo-lhe o sentido. Roubo morte à morte. Roubo trevas e solidão. Morte morte morte morte morte. Não tenho medo das palavras. Torno a ver os teus olhos diante dos meus, manhã, e quero que esta seja a nosso última palavra: amor.” (p. 217, 218)

 

 

Sobre o autor: José Luís Peixoto nasceu em Galveias, em 1974. É um dos autores de maior destaque da literatura portuguesa contemporânea. A sua obra ficcional e poética figura em dezenas de antologias, traduzidas num vasto número de idiomas, e é estudada em diversas universidades nacionais e estrangeiras. Em 2001, acompanhando um imenso reconhecimento da crítica e do público, foi atribuído o Prêmio Literário José Saramago ao romance Nenhum olhar. Em 2007, Cemitério de pianos recebeu o Prêmio Cálamo Otra Mirada, destinado ao melhor romance estrangeiro publicado na Espanha. Com Livro, venceu o Prêmio Libro d’Europa, atribuído na Itália ao melhor romance europeu do ano anterior. Em 2016, Galveias foi o vencedor do Prêmio Oceanos (Fonte: Editora Dublinense).

 

 

Título: Nenhum Olhar

Autor: José Luís Peixoto

Editora: Dublinense

Páginas: 224

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