[Resenha] O carro do êxito, de Oswaldo de Camargo

[Resenha] O carro do êxito, de Oswaldo de Camargo

Sinopse: Nova edição da coletânea de contos de um dos mais notáveis militantes do movimento negro brasileiro, com prefácio de Mário Augusto Medeiros da Silva e ilustrações de Marcelo D’Salete.

 

Publicado pela primeira vez em 1972, O carro do êxito é o único livro de contos de Oswaldo de Camargo, um dos mais notáveis intelectuais negros do século XX. A obra apresenta uma perspectiva pouco usual na literatura brasileira: personagens negros não apenas na luta, mas no triunfo. O título ― alusão ao poema de Mário de Andrade, “O carro da miséria” ― é uma prévia de histórias que retratam o negro descobrindo que “é possível ser na vida, apesar dela”, como afirma o sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva no prefácio desta edição.
As catorze narrativas reunidas neste volume, que conta com ilustrações de Marcelo D’Salete, mesclam a ficção e as experiências do escritor, tendo como pano de fundo a vida urbana em São Paulo. O leitor é levado por Camargo ― e Lírio da Conceição, um dos personagens que perpassam a coletânea ― a um orgulhoso passeio pelas redações da chamada Imprensa Negra, pelos eventos da Associação Cultural do Negro e por diálogos essenciais sobre raça e identidade.
Esta nova edição recupera o trabalho de Oswaldo de Camargo iniciado nos anos 1970, com questões incontornáveis como negritude, militância e representação, e prova que O carro do êxito é fundamental não apenas para o debate e a luta antirracistas, mas para a literatura brasileira como um todo.”

 

Contém algumas revelações sobre o enredo.

O carro do êxito (2021) de Oswaldo de Camargo é mais um título recebido da parceria com a Companhia das Letras e não poderíamos ficar mais gratos à Companhia pelo envio desse título, em especial. 

Já na belíssima capa do livro, assinada por Alceu Chiesorin Nunes, temos uma carta de apresentação de outro grande autor publicado pela Companhia, Jeferson Tenório: “um exuberante registro ficcional de vidas negras”. E é isso. Exuberante pela riqueza estilística com que são construídas as histórias, numa linguagem elaborada, porém, sem as vestes de um eruditismo desnecessário; exuberante pelos enredos que nos levam por tempos e espaços diversos, e que, em comum, têm o cenário psicológico das vidas negras, um ponto de vista que não é só um direito, mas uma necessidade, numa sociedade racista, como é aquela de um certo país que sempre se orgulhou de sua “democracia racial”. 

É assim que vemos serem contados vários episódios que, embora ficcionais, são reprises de muitas situações vividas ou sabidas nesta república ainda hoje colonial. Em Civilização, por exemplo, o autor traz à tona a questão da pressão social para o branqueamento. O diferencial é que esse tema é abordado pela parte a quem é imposta a pressão. Nas narrativas “brancas”, o que em geral se vê, em especial em obras mais antigas, é o estabelecimento de um padrão estético e um julgamento de valor estabelecido entre o que é belo, neste caso, branco, e o que não é. O conto debate de maneira elegante e vigorosa a situação de tensão causada à identidade negra, imposta pela cultura estética branca. Numa genial alusão, Camargo evoca o poeta Cruz e Sousa, para dizer que essa identidade negra fica “emparedada”. 

Cadê o oboé, menino? Toca aí o oboé, primeiro conto do livro, é a história de Paulinho, menino negro, que aprende a tocar oboé, tornando-se um talentoso músico. Como muitas outras histórias de marginalizados sociais, o oboé e seu aprendizado foram circunstâncias acidentais na vida de Paulinho. Sem ter acesso universal garantido a bens básicos como saúde e educação de qualidade, a população pobre brasileira tampouco pode sonhar em aceder a uma formação musical, especialmente de um instrumento de tamanho prestígio, que figura no corpo das orquestras sinfônicas.  

– Onde aprendeu?

– Onde nasci, Mineu. Tinha uns moleques comigo, deles não sei, mas eu consegui aprender.

(…)

– Como imaginei. É um acidente na sua vida. Deus é bom; deu esse degrau a você.

 

Ainda jovem, Paulinho não tem a percepção do processo de marginalização do povo negro e dos mais redobrados esforços que esse precisa fazer para garantir dignas condições de existência, inclusive organizando-se em associações que lutam pelas mais diversas causas. Vive placidamente, como ele próprio fala a respeito de seus pais, sem conhecer o racismo, ou seria melhor conjeturarmos: suportando-o e sofrendo-o surdamente. 

Algo que eu nunca imaginara, brilhei em associações negras, que, agora sei, vêm existindo em muitos de nossos lugares desde o século XIX. Em Mineu, eu não chegaria a saber nada disso, conhecer trecho algum do trajeto de preto. A placidez existente em Mineu vinha de todo esse desconhecimento. Minha mãe e meu pai morreram plácidos…

 

No conto, o oboé também pode ser visto com uma representação do domínio cultural eurocentrista, cujo acesso garante posição de destaque na sociedade, ao mesmo tempo em que o afasta de sua própria cultura. Narrando sua história, já na longevidade da existência, Paulinho rememora o menino do oboé e parece compreender o que significou esse período de sua vida. 

Hoje, resta um momento desse episódio dos meus dezesseis anos – dezesseis anos não passam de um episódio – que eu gostaria de corrigir, para meu resgate diante da esperança sem tréguas de minha gente negra: ter morrido no apartamento da vereadora, naquela noite, ante a pergunta risonha do seu primeiro convidado: 

(…)

 

Muitas outras discussões emergem nas 14 narrativas curtas do livro, mas trazem em si uma unidade ideológica que o autor nos quer mostrar: as vivências daqueles que, em geral, não são aceitos como protagonistas de uma arte tão valorizada quanto é a literatura. É, por exemplo, a perspectiva da jovem negra que teria ficado grávida do dono da fazenda onde morava, sendo forçada pela patroa a desaparecer. É o pai que, abatido pela pobreza e pela necessidade, precisa entregar o filho a um senhor abastado, que recebe o menino “como se fosse da família”. É, novamente, a identidade negra sufocada pelo racismo, sendo posta à prova, tanto no plano social quanto no individual. 

Os espaços das histórias são os mais diversos, a zona rural, a cidadezinha, a metrópole, além de seus subambientes, como o orfanato, as mansões, os clubes das associações negras. Os temas sociais presentes no livro são evidentemente intencionais, discussões que Oswaldo de Camargo não poderia, com toda certeza, deixar de fazer no universo literário, sendo ele uma das mais proeminentes figuras dos movimentos negros desde meados do século passado. Ainda assim, lembrando aqui o mestre Antonio Candido, uma obra literária não pode ser vista apenas por suas características extrínsecas ou intrínsecas. E, neste último aspecto, O carro do êxito nos brinda com literatura da melhor qualidade.

 

 

Título: O carro do êxito

Autor: Oswaldo de Camargo

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2021

Páginas: 144

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