[Resenha] O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

[Resenha] O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Sinopse: Neste romance embebido de lirismo, Micheliny Verunschk joga luz sobre a história de duas crianças indígenas raptadas no Brasil do século XIX.

Em 1817, Spix e Martius desembarcaram no Brasil com a missão de registrar suas impressões sobre o país. Três anos e 10 mil quilômetros depois, os exploradores voltaram a Munique trazendo consigo não apenas um extenso relato da viagem, mas também um menino e uma menina indígenas, que morreriam pouco tempo depois de chegar em solo europeu.
Em seu quinto romance, Micheliny Verunschk constrói uma poderosa narrativa que deixa de lado a historiografia hegemônica para dar protagonismo às crianças ― batizadas aqui de Iñe-e e Juri ― arrancadas de sua terra natal. Entrelaçando a trama do século XIX ao Brasil contemporâneo, somos apresentados também a Josefa, jovem que reconhece as lacunas de seu passado ao ver a imagem de Iñe-e em uma exposição.
Com uma prosa embebida de lirismo, este é um livro sem paralelos na literatura brasileira ao tratar de temas como memória, colonialismo e pertencimento.”

 

O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021) está classificado como ficção brasileira, mas poderia estar também na categoria poesia. Se a forma como foram distribuídas suas palavras prepondera na hora de inseri-lo nas estantes de uma biblioteca, a forma como as recebemos nos leva a imergir num universo de profundo lirismo.

A autora parte da história real de duas crianças indígenas levadas a Munique pelos exploradores Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, recontando-a de um ponto de vista mais interessado em mostrar o trágico destino das crianças, a separação da família, o desterro, a solidão e a morte prematura.

À guisa de epígrafe, o livro traz um pequeno texto que narra a criação do mundo por Niimúe, mito da cosmovisão do povo miranha. Após essa abertura, o texto se divide em três partes, que se subdividem em capítulos curtos. Predomina a linguagem de tonalidade lírica, entrecortada pela colagem de trechos de textos jornalísticos, crônicas de antigos exploradores e outros textos.

Na primeira parte, ficaremos conhecendo a história das crianças, assim como seus primeiros dias na Europa. A autora concebeu nomes para essas crianças que tiveram suas identidades destituídas sob as denominações de Johann e Isabella. O menino é Caracara-í, mas também Juri, assim como o seu povo. A menina, personagem central da obra, é Iñe-e, que, quando criança, tem um encontro com a Onça Grande, Tipai uu.

A parte dois descreve a vida e morte em Munique. E se fazemos a revelação do que acontece a Iñe-e e Juri (Caracara-í) é por se tratar de um fato histórico e porque a densidade da narrativa não está na tragédia do desfecho, mas na da trajetória.

A terceira parte, talvez aquela em que o lirismo é mais patente, é o discurso da Onça Grande. É o momento de reencontro, muito mais que simbiótico, de Tipai uu e Iñe-e. É a menina que se incorpora em onça, transmutada em Uaara-Iñe-e.

Uaara-Iñe-e! falou a Onça Grande com sua voz muito antiga. E num instante muito rápido onça era menina, e menina era onça. (VERUNSCHK, 2021, p. 128)

A história recriada das crianças ainda encontra a de Josefa, personagem dos dias atuais, cuja identidade indígena vai se perdendo e se apagando no Brasil socioculturalmente embranquecido e europeizado. Josefa ao descobrir a história das crianças vai, aos poucos, redescobrindo suas origens.

O som do rugido da onça é uma prosa-poética muito bem construída. Seus diversos registros de linguagem a enriquecem de maneira única: a linguagem formal; a oralidade do Brasil interior; as palavras de diversos povos indígenas e palavras feitas para serem sentidas pelos leitores, cujos significados não encontramos nos dicionários, pois foram inventadas pela autora.

É, sobretudo, uma narrativa pungente que nos comove do início ao fim, por todos os temas que por ela perpassam. Particularmente, senti-me tocado pela solidão das crianças em Munique. Solidão forçada pelo mutismo a que foram impostas por não terem como se comunicar. Lá, eram vistas como matéria homogênea da “fauna” brasileira. Suas identidades apagadas não permitiam compreender que Iñe-e e Caracara-í eram filhos de povos diferentes e inimigos. Não falavam a mesma língua, tampouco falavam qualquer outra em comum com mais alguém naquelas terras distantes e frias.

Além disso, o livro fala de memória, de identidade, de colonialismo (passado e presente), do direito a terra, da relação com a natureza que estabelecem os povos indígenas, que nela vivem e dela sobrevivem, e aqueles que exploram desmedidamente os recursos naturais, como se o meio ambiente estivesse dissociado da própria existência humana.

 

Exemplar cedido gentilmente pela Companhia das Letras na parceria time de leitores.

Livro premiado na categoria Romance Literário do 64º Prêmio Jabuti, em cerimônia realizada no dia 24 de novembro de 2022.

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Título: O som do rugido da onça

Autora: Micheliny Verunschk

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 168

Compre na Amazon: O som do rugido da onça

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Milton Santos
Milton Santos
23 de março de 2022 20:46

Depois de ler uma “resenha” vazia sobre a “O som do rugido…”, segui buscando mais informação sobre o livro e encontro essa belezura do Anderson Novais. Não encontrei semelhanças entre uma resenha e outra excetuando os nomes das personagens. Enfim posso encomendar o livro tranquilamente depois de ter renovada minha espectativa com a obra. Grato, Anderson.

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