[DIÁRIO] “O LIVRO É A MELHOR INVENÇÃO DO HOMEM”: CAROLINA MARIA DE JESUS

[DIÁRIO] “O LIVRO É A MELHOR INVENÇÃO DO HOMEM”: CAROLINA MARIA DE JESUS

Quando o jornalista Audálio Dantas foi até a favela do Canindé em 1958 para fazer uma reportagem, talvez jamais tenha pensado que havia ali mesmo, entre os favelados, uma mulher, negra, catadora de recicláveis, que já havia escrito uma narrativa que nem ele nem qualquer outro jornalista poderia escrever. Em cerca de vinte cadernos guardados em seu barraco, Carolina mostrou a sua visão da favela e dos favelados. Tudo isso com muita verdade, e vontade de fazer de sua narrativa, também poesia.

Audálio fez sua reportagem, uma reprodução de trechos dos diários de Carolina, publicada no jornal Folha da Noite (1958) e na revista O Cruzeiro (1959). Em 1960 a versão editada dos diários, conforme conhecemos hoje, foi publicada sob o título Quarto de Despejo: diário de uma favelada, best-seller traduzido para 13 línguas e admirado por ninguém menos que Clarice Lispector.

 

“Do diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus surgiu este autêntico exemplo de literatura-verdade, que relata o cotidiano triste e cruel da vida na favela. Com uma linguagem simples, mas contundente e original, a autora comove o leitor pelo realismo e pela sensibilidade na maneira de contar o que viu, viveu e sentiu durante os anos em que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo, com seus três filhos.

Ao ler este relato – verdadeiro best-seller no Brasil e no exterior -, você vai acompanhar o duro dia a dia de quem não tem amanhã. E vai perceber com tristeza que, mesmo tendo sido escrito na década de 1950, este livro jamais perdeu sua atualidade.” (sinopse/contracapa)

 

 

 

“Clarice mostrou-se, inclusive, grande fã de Carolina, como se vê em matéria na revista Manchete, de agosto de 1961, assinada por Paulo Mendes Campos, em meio a uma crise no mercado editorial. No fim do texto, Mendes Campos traz “um esplêndido diálogo” ocorrido entre Clarice e Carolina, que teria elogiado a escrita da primeira: “Como você escreve elegante”. Enquanto Clarice teria exclamado: “E como você escreve verdadeiro, Carolina!”. Fonte: Revista Quatro Cinco Um

Fonte da imagem: Quarta Capa

 

Eu gosto muito de ler diários e cartas não ficcionais. Gosto da imersão que eles proporcionam na vida exposta ali. Em Quarto de despejo, apesar da tristeza de ler um Brasil que da década de 1950 até os dias de hoje pouco (ou nada) evoluiu na questão da pobreza e desigualdade social, foi impossível não me afeiçoar à mulher que me guiou não só pelas ruas e vielas da favela do Canindé, mas também pelos seus sonhos e por seu coração. Fui amiga íntima de Carolina durante os dias em que passamos juntas; eu lendo seu diário, ela me confidenciando sua vida. Ri com seu riso, com suas piadas e ironias. Compreendi suas contradições. Eu não sou ninguém, mas concordo com Clarice Lispector: como escrevia verdadeiro essa Carolina.

Veja alguns trechos de Quarto de despejo abaixo:

 

“Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.” (p. 24)

 

“Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.(p. 25)

 

“Todos tem um ideal. O meu é gostar de ler.” (p. 26)

 

“… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”(p. 29)

 

“A democracia está perdendo seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia.” (p. 39)

 

“Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.” (p. 44)

 

“Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento de cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.” (p. 64)

 

A escritora Maria Carolina de Jesus, em foto de 13/12/1961 antes de embarcar para o Uruguai para lançar o livro “Quarto do Despejo” Estadão/Acervo

Depois, foi inevitável: li Onde estaes felicidade e, em seguida, o Diário de Bitita. Este último, sem dúvida alguma, um dos livros mais extraordinários que eu li na vida. Uma aula de história do Brasil pós-abolição como eu nunca tive. Além disso, já tendo lido Quarto de Despejo, fiquei muito impressionada com a evolução de Carolina como escritora. Não por acaso, quando da escrita deste livro ela tinha o básico para conseguir escrever com tranquilidade: um teto e comida.

Diário de Bitita foi publicado após a morte da autora, e primeiramente na França (vale muito a leitura do trabalho de Deise Quintiliano Pereira, neste link, que propõe uma analise do texto autobiográfico baseado nas recordações de infância da autora pelo viés de seu aspecto ensaístico).

Li o Diário em e-book: é difícil achar a edição impressa deste livro em preço justo, o que é uma pena. Conhecer Carolina foi algo muito marcante na minha vida de leitora; estou ansiosa pela publicação de sua obra (ou parte dela) pela Companhia das Letras. Que mulher extraordinária! Que vida difícil! E que pena não ter tido a oportunidade de conhecê-la nos meus anos escolares, seja nas aulas de língua portuguesa ou história.

Veja mais publicações sobre a escritora Carolina Maria de Jesus aqui no blog clicando neste link.
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