[RESENHA] As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial, de Svetlana Aleksiévitch

Sinopse: “Nesta obra, a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2015, Svetlana Aleksiévitch, dá voz às memórias de pessoas que viveram a guerra durante a infância.”

 

Quando Svetlana Aleksiévitch ganhou o Nobel de Literatura em 2015 eu fui, reconheço, uma das várias pessoas que, torcendo o nariz, questionou: como assim uma jornalista ganhar o maior prêmio de… literatura? Pois bem, como em tudo na vida, e a literatura não foge à regra, as coisas não assim, oito ou oitenta. Não vou discutir (agora) o conceito de literatura pois, acreditem, quanto mais se estuda mais é notório que a arte das palavras não é algo fechado, intocado ou quase místico. A suposta aura inatingível da literatura nada mais é que academicismo elitista. Juro.

Svetlana faz, sim, literatura. Ela não faz ficção, não cria mundos fantásticos nem escreve romances ou qualquer coisa que você tenha certeza absoluta que é literatura. Ao invés de dar voz à personagens imaginados, ela escolhe pessoas reais para contarem suas próprias histórias. A autora reúne relatos de pessoas feridas e nos mostra a face esquecida (ou nunca mostrada) dos trágicos períodos de guerra. Se isso não é literatura, eu não sei mais o que pode ser…

 

“É assim que eu ouço e vejo o mundo — como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes do dia a dia. É assim que meus olhos e ouvidos funcionam. Dessa forma, minha mente e emoção chegam ao seu potencial máximo. Dessa maneira eu posso ser, ao mesmo tempo, escritora, repórter, socióloga, psicóloga e pregadora.” (Svetlana Aleksiévitch, Revista TAG Curadoria Julho/2018)

 

As últimas testemunhas foi o livro enviado pela TAG Curadoria aos seus assinantes no mês de julho, aniversário do clube, como uma escolha da empresa, sem um curador por trás da indicação. Eu já planejava ler algo da Svetlana, provavelmente A guerra não tem rosto de mulher (ainda na minha lista de leitura), mas o momento ainda não havia chegado. Outras leituras acabaram roubando a vez da escritora bielorrussa na minha lista de compras. O livro enviado pela TAG, no momento publicado no Brasil apenas pelo clube, em parceria com a Companhia das Letras (que deve publicá-lo em capa comum posteriormente) resolveu o meu problema. Finalmente li um livro da Svetlana e, meu Deus, foi um grandessíssimo soco no estômago. As últimas testemunhas reúne vários relatos de pessoas que eram crianças na época da ocupação alemã na Rússia durante a Segunda Guerra Mundial.

É de doer o peito. Todos os dias em que eu conseguia ler algumas páginas, precisava comentar com alguém sobre o sofrimento daquelas pessoas, do contrário aquilo quase me sufocava. Ler sobre todas as crianças que ficaram órfãs; que tomavam água quente como se fosse sopa, para acalmar a fome; que fugindo dos ataques viam seus pais caírem inertes no chão, sem entender muito bem o que acabara de acontecer; que comiam lasca de parede e de eletrodomésticos, resquício de grama ou de qualquer vegetação aparente para vencer a fome, não chega nem perto do sofrimento real daquelas pessoas, eu sei. Mas doeu e me marcou profundamente. Um depoimento com o qual eu tive pesadelos por dias foi o da imagem de um bebê que tomava o leite do seio de sua mãe enquanto ela já era apenas um corpo inerte desprovido de sentidos. A pessoa que presenciou o ato jamais pôde esquecer, e eu também não vou. Essas pessoas que sobreviveram a tempos tão difíceis, que são uma pequena amostra viva do terror que foi (e ainda é) a guerra, são os protagonistas do livro da ganhadora do Nobel de 2015.

Esse livro é muito denso. Foi uma leitura demorada e bastante difícil. Evitei ler à noite, pois me dava pesadelos, como eu já mencionei. Muitas daquelas crianças tinham a idade da minha filha, ou um pouco mais. Lendo o livro da Svetlana, é impossível não pensar nas crianças de hoje que vivem na Síria, Venezuela e tantos outros países que, por motivos diversos, vivem algum tipo de conflito. Até mesmo aqui no Brasil.

Dito tudo isso, ao contrário do que pode ter parecido, eu recomendo muitíssimo a leitura desse livro! Esse ou outro da Svetlana, mas guarde o título As últimas testemunhas. Não é todo autor que consegue se anular para dar voz aos seus personagens. E aqui, mais que uma simples transcrição de áudios, a autora escolhe o que e como contar. É pura arte. Uma Arte que machuca, mas é extremamente necessária. Neste título você percebe as pausas, as hesitações, o momento em que o depoente está prestes a chorar. E, inevitavelmente, você chora com ele.

 

 

“Não só os orfanatos passavam fome, as pessoas ao nosso redor também, porque entregavam tudo para o front. De crianças pequenas éramos umas quarenta, nos instalaram separadamente. À noite — berros. Chamávamos por mamãe e papai. Os educadores e professores tentavam não dizer a palavra ‘mãe’ na nossa frente. Eles contavam histórias e escolhiam os livrinhos que não tinham essa palavra. Se de repente alguém falava ‘mãe’, na hora começava um chororô. Um chororô inconsolável.” (contracapa)

 

 

 

Título: As últimas testemunhas

Autora: Svetlana Aleksiévitch

Tradução do russo: Cecília Rosas

Editora: TAG Experiências Literárias / Companhia das Letras

Páginas: 320

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[…] para esse mês, nos últimos anos. Em 2018, por exemplo, recebemos em primeira mão o livro As últimas testemunhas, de Svetlana Alexijévitch, que ainda não havia sido publicado no […]

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