[Resenha] A pediatra, de Andréa del Fuego

[Resenha] A pediatra, de Andréa del Fuego

Sinopse: Cecília é o oposto do que se imagina de uma pediatra ― uma mulher sem espírito maternal, pouco apreço por crianças e zero paciência para os pais e mães que as acompanham. Porém a medicina era um caminho natural para ela, que seguiu os passos do pai. Apesar de sua frieza com os pacientes, ela tem um consultório bem-sucedido.

 

A pediatra (Companhia das Letras, 2021), terceiro romance de Andréa del Fuego, foi só a segunda leitura deste 2022 recém-nascido e, com toda a certeza, será umas das melhores deste ano (mesmo que minha “listinha” de leituras pretendidas esteja repleta de gente consagradíssima).

O livro, narrado em primeira pessoa pela protagonista, Cecília, a pediatra, tem um ritmo alucinante. Acredito que boa parte dos leitores só conseguirá largá-lo quando chegarem à página 159. Esse compasso narrativo parece querer traduzir para nós a vida acelerada da protagonista e também as urgências do ambiente hospitalar e das clínicas médicas, nos quais, por menores que sejam os problemas das pessoas, há sempre pressa na consulta, no diagnóstico, em sair da atmosfera insalubre e contaminada desses espaços onde a saúde é ao mesmo tempo cuidada e posta em risco.

A pediatra é a história de uma médica especializada no tratamento de crianças que não tem empatia nenhuma pelos pequenos. Não se trata de uma repulsa incontrolável, mas um sentido de distanciamento imposto por Cecília, que vê em seus pacientes não mais que objetos a serem consertados com a utilização de métodos objetivos e fórmulas genéricas e repetitivas, aplicáveis indistintamente a qualquer um em qualquer situação.

Cecília é uma mulher ainda jovem, casada com um marido em estado depressivo no início da narrativa. Ela logo se envolve num caso extraconjugal, que demarcará o eixo dramático central da história a partir de então. Nessa relação, ela acaba por desenvolver uma inusitada empatia pelo filho do amante, um menino de dois anos.

Não sei exatamente qual o pensamento geral de escritores e escritoras sobre as comparações de suas obras. Desconheço se gostam, desgostam ou são indiferentes a esse exercício que nós leitores por vezes fazemos. Acredito que no mínimo não devam se importar, pois minha ideia geral sobre as comparações é que as fazemos quando tanto o objeto paradigma quanto aquele ao qual queremos compará-lo sejam obras que mereceram nossa atenção, que nos agradaram e nos desconcertaram de alguma forma. Ao ler A pediatra não pude escapar de pensar em Ariana Harwicz com Morra, amor. Sem me deter em fazer um trabalho acadêmico sobre essa comparação, posso dizer que o estilo narrativo do fluxo de consciência e a forma desinibida e brutal de ambas as autoras de exporem os sentimentos mais profundos e perturbadores são pontos de ressonância em seus escritos. Del Fuego, em minha opinião, consegue dar uma cadência mais fluida ao seu texto, nos provocando a devorá-lo, sem, no entanto, deixarmos de tropeçar naqueles momentos em que nos deparamos com uma frase cínica, às vezes de um humor mórbido, de Cecília.

 

(…) eu ali era só pegar o bezerro, aferir Apgar, aspirar se fosse o caso, devolver limpo.

 

Recuperando agora um trecho da pequena resenha que fiz de Morra, amor, disse lá que “Ariana nos mostra os subterrâneos da consciência, sem filtros e sem preocupações em ferir nossas sensibilidades com uma linguagem direta e impactante.” Não é diferente em A pediatra.

Chamam a atenção também, no livro, as descrições bastante informativas de procedimentos médicos, mas finalizando quase sempre com o tom de frieza e automatismo. As descrições são sucintas, condizendo com o estilo adotado em todo o texto, além de ser um acerto se considerarmos que boa parte dos leitores, leigos no assunto, poderiam se perder em informações literariamente desnecessárias.

Apesar de não ser um romance longo, é denso. O eixo psicológico central é contar quem é a pediatra Cecília. É ela própria a fazer isso, sem pudor. A mostrar especialmente a água suja que há por dentro de si (e agora a comparação é com A filha perdida, de Elena Ferrante).

 

Eu só tinha a mim, mas eu era brutal e inóspita.

 

Mas se quisermos expandir as fronteiras do “eu”, podemos ver no livro muitos outros temas igualmente interessantes:

→ A disputa por espaço (emprego, dinheiro, poder) no ambiente capitalista (Cecília e seus movimentos para conseguir clientes quando se vê ameaçada por um profissional que adota métodos de trabalho mais humanistas que os seus).

→ Discussões sobre os métodos obstetrícios: parto natural, normal e cesariana. Neste ponto prevalecendo o ponto de vista da narradora, adepta do último método.

→ A demarcação dos papéis sociais numa sociedade de classes (Cecília enquadrando empregada e babá em seus “espaços”).

A babá foi solícita como se eu já a tivesse efetivado, trouxe o que pedi na versão sereia. Esperou o agradecimento, que não fiz, eu ignorei a sereia, a babá ficou muda até que eu pagasse pelos dinossauros. Disse que precisava voltar e se despediu. Em nada quebrei a confiança dela, hierarquia bem colocada desagrada ninguém, nos encontraríamos na porta da Arte do Crescer e ela viria cúmplice falar comigo.

 

→ As diferenças de níveis dentro de uma grande classe (Cecília não pertence ao quadro dos capitalistas, pois é uma profissional liberal que trabalha para se sustentar, ainda assim, posiciona-se de forma superior em relação a outras pessoas que também trabalham como ela, mas estão economicamente abaixo).

→ O mito da meritocracia, tangenciado no fato de que Cecília é uma médica correta, nada especial em sua profissão. Tem uma clínica e ainda auxilia na realização de partos em um hospital. Está no meio porque seu pai é médico, não por vocação pessoal.

Além disso, voltando às perspectivas psicológicas, vemos uma protagonista que demonstra não ter um senso existencial profundo. Vive uma vida que tende mais ao hedonismo, ao prazer superficial, rápido e acima de tudo que não crie raízes. Não tem amizades; tem uma relação até certo ponto distante com os pais (embora tenha afeto pelo pai, o vê pouco e não tem muito apreço pela mãe); se envolve sem culpa em uma relação extraconjugal, despreocupada com os impactos que isso poderia causar para os terceiros inscientes.

Eu transava com um idiota, merecia mais suspense, por que eu não cultivava amigas em vez de tomar cerveja com a empregada? Namorado em vez de amante, um filho que fosse meu. Mas eu teria que gostar dessas pessoas, esse elenco atual eu podia botar na rua sem dar satisfação.

 

O fim da história, no entanto, quer apontar em outra direção, mas vamos parando por aqui.

 

 

Título: A pediatra

Autora: Andréa del Fuego

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 160

Compre na Amazon: A pediatra

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Tamires
Tamires
7 de janeiro de 2022 14:47

adorando

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