[Resenha] A Mulher Ruiva, de Orhan Pamuk

[Resenha] A Mulher Ruiva, de Orhan Pamuk

“Uma parábola sobre a Turquia dos dias de hoje […] que mescla uma observação minuciosa de detalhes com os traços amplos que associamos às fábulas e mitos.” The Guardian.

Istambul, cenário principal do romance de Pamuk, é conhecida mundialmente como a cidade em dois continentes. Não apenas isso: é o lugar onde se encontram (e se chocam, talvez) os macro sentidos culturais que permeiam o imaginário da humanidade, a cultura ocidental e a cultura oriental (para ficarmos nesse reducionismo do senso comum). Poderíamos dizer ainda que é uma cidade cindida entre esses dois mundos, mas ela própria, segundo a lenda de sua fundação, é anterior à noção política de continente. Istambul, que já foi Constantinopla, começou em 667 AEC como Bizâncio, remissão ao nome de seu lendário fundador, o rei Bizas. A separação convencionada entre Europa e Ásia seria proposta no século seguinte.

Deixando a geografia e a história ao fundo, o que temos em A Mulher Ruiva (Companhia das Letras, 2023) é uma narrativa que dialoga intensamente com os clássicos das tragédias gregas e, por que não dizer, com uma boa história novelesca. Trata-se de um enredo que nos envolve pelas reviravoltas surpreendentes, pelas coincidências impossíveis e que também nos cansa um pouco com certos exageros de detalhes que parecem exceder-se na trama.

Na década de 1980, o protagonista, principal narrador da história, é um jovem adolescente de uma família de classe média baixa. O pai, dono de uma farmácia, é também um militante comunista, que vive sob a sombra do medo do regime militar que vigorava então na Turquia. Um pai que, além de tudo, parece não se ajustar à vida familiar. A figura paterna será, ao longo do romance, uma referência constante e um convite à reflexão e à interseção com um dos textos clássicos em que A Mulher Ruiva buscou referências: Édipo Rei, de Sófocles.

Logo no início, o protagonista-narrador nos informa que queria ser escritor, mas estudou geologia e se tornou empreiteiro. Duas carreiras tão distantes no que diz respeito aos campos de conhecimento que devem ser estudados para acessá-las, mais que isso, profissões cujo sentido de realização pessoal parecem não ter nenhum ponto em comum, podem surpreender os leitores. Mas a trajetória percorrida pelo jovem, os liames psicológicos que o vincularão ao seu destino profissional começam a se definir de maneira contundente quando a necessidade econômica fará com que o aspirante a escritor se una a uma segunda figura paterna num trabalho braçal estafante, mas que guarda em si uma sabedoria tradicional que ultrapassa as técnicas de sua execução.

Nesse encontro, cujo cenário será a cidadezinha de Ögören (hoje um subúrbio de Istambul), o protagonista preencherá o vácuo paterno pela ligação de amizade e confiança que vai estabelecendo com seu mestre. Nas histórias contadas por ele, nas máximas emitidas sobre o ofício que exerce ou sobre a vida em si, o jovem vai assentando os fragmentos emocionais do distanciamento paterno e também da separação de sua mãe, de quem estava distante em razão do trabalho. É assim que o mestre um diz lhe diz:

Um pai deve ser justo. um pai que não seja justo cegará o próprio filho.

Interessante notar o verbo cegar, aqui utilizado como uma referência direta à história de Édipo, que cegou a si próprio ao descobrir seus crimes de parricídio e incesto. Seria Édipo o real culpado deles? Seria o destino do qual não se pode fugir? Seria a crença desmedida de Laio, pai de Édipo, que desencadeou toda a tragédia ocorrida com sua família? 

A personagem que dá título ao livro também aparecerá em Ögören, e como não é difícil imaginar, será aquela por quem o protagonista se apaixona subitamente, criando mais um núcleo dramático no romance, que une, ao fim da narrativa, passado, presente e futuro, e até mesmo situações paralelas. Ela é a narradora da terceira e última parte da história, uma estratégia interessante do autor, já que a Mulher Ruiva é quem tem onisciência de fatos desconhecidos pelo protagonista-narrador das duas partes iniciais.

A Mulher Ruiva é uma história que nos remete a outras histórias, sobretudo à de Édipo, já citada. Há também referência ao poema Shahnameh (traduzido parcialmente para o português com o título de Épica dos Reis), do escritor iraniano Ferdusi (ca. 940 – ca. 1020). Semelhante à tragédia grega, no poema persa o rei Rostam mata o filho Sohrab por engano. Essa inversão de papéis nos remete também ao quase sacrifício de Isaac por seu pai Abraão, a pedido de Deus, como prova de devoção. Bem visto, não é muito diferente do que Laio ordenou que fosse feito com seu filho, após ouvir a profecia do oráculo de Delfos. Essas três histórias reforçam também a imagem de Istambul como ponto de encontro entre oriente e ocidente. Ao se entrelaçarem, trazem para um novo texto a representação da literatura ocidental (Édipo Rei), do oriente (Shahnameh) e de uma que, nascida no oriente, disseminou-se no ocidente, exercendo profunda influência na sociedade.

Há muitas coisas mais na história que não podem ser exploradas aqui sem enfraquecermos a experiência da descoberta. Para quem participa de clubes de leitura (mas não só), A Mulher Ruiva é uma boa sugestão, pela quantidade de debates que pode suscitar.

 

Título: A Mulher Ruiva

Autor: Orhan Pamuk

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2023

Páginas: 303

Compre na Amazon: A Mulher Ruiva

0 0 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
0
Queremos saber a sua opinião, deixe um comentário!x