[Resenha] Estorvo, de Chico Buarque

[Resenha] Estorvo, de Chico Buarque

Sinopse: No livro, o leitor é mergulhado em um universo de delírio e digressões ― característica que viria a ser reconhecida como recorrente na ficção buarquiana, assim como o cenário carioca ― ao acompanhar o narrador em um nebuloso vagar pela cidade, após se deparar com um desconhecido em sua porta. A fuga do que não reconhece leva o homem a um incessante ziguezaguear por locais já conhecidos, como o sítio da família, a boutique da ex-mulher e o edifício de um velho amigo.

Uma metáfora ao Brasil da época, Estorvo é um marco para a literatura brasileira e, passadas três décadas, se mantém atual, assim como a obra de Chico Buarque.

 

Estorvo foi lançado pela primeira vez em 1991. Recepcionado pela crítica de forma praticamente unânime, a estreia de Chico Buarque no romance foi um acontecimento nas mais diferentes esferas da cultura e deu início à longa carreira literária do autor. Em 2021, trinta anos depois, a Companhia das Letras relança este que é um de seus maiores sucessos, em uma edição especial com textos de Roberto Schwarz, Sérgio Sant’Anna, Marisa Lajolo e Augusto Massi.

 

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A interessante epígrafe do livro traz, além da palavra que dá título à obra, no início e no fim, vários outros termos ligados ao campo semântico de “estorvo”, seja em língua portuguesa, latim ou inglês, algumas das quais podemos reconhecer facilmente o parentesco, outras, apenas recorrendo a consultas etimológicas mais detalhadas. De cara, Chico parece querer nos dizer com esta epígrafe que a história não é um simples estorvo, mas uma confusão generalizada, lançando expectativas nos leitores ávidos por uma boa trama. Uma boa estratégia, seguida da pintura de romance policial que o autor empresta à composição do enredo, sem, no entanto, podermos inserir o livro nessa categoria. 

A história do romance (ou novela) começa com uma espécie de paranoia do protagonista-narrador, relembrando a visão que teve, ao olhar pelo olho mágico da porta de seu apartamento, de um homem misterioso, cuja figura ele ao mesmo tempo ignora e pensa reconhecer de algum tempo. 

Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. 

Esse episódio motiva o narrador a sair de seu apartamento e, a partir daí, vão se desdobrando os eventos que compõem o enredo da narrativa. 

Os acontecimentos, em sua maior parte, se passam no espaço urbano, com descrições moderadas dos ambientes, apenas para situar o leitor nos locais em que transcorrem as ações. Há deslocamentos para uma área rural, o sítio abandonado da família do narrador. Porém, não há propriamente uma atenção ao ambiente rural como elemento determinante ao curso da história. O espaço predominante é o psicológico. É o torvelinho dos fatos em que se envolve o narrador, aliado a suas reflexões, sonhos e conjecturas premonitórias que sustentam o vigor da narrativa. 

Um elemento importante a ser destacado é o deslocamento. O livro se divide em 11 capítulos e no início de quase todos eles há uma mudança no espaço físico: do apartamento do narrador para a casa de sua irmã, da cidade para o sítio, do sítio para a cidade etc. Essas constantes idas e vindas contribuem com o processo de turbulência experienciado pelo protagonista, colocando-o no turbilhão de seus malfadados sucessos. 

 

 

Ainda nas fases preliminares da leitura, pensei ter me deparado com um herói medíocre, na figura do narrador. Este conceito foi concebido por George Lukács, para quem o herói medíocre é um personagem (protagonista) sem grandes feitos, ou seja, movimenta-se na história sem que suas ações sejam percebidas como de grande relevância para a narrativa. Mas não é o caso. O protagonista, aliás, nem pode ser categorizado como herói, talvez anti-herói ou nem isso.   

Se não podemos considerar o narrador propriamente como um herói medíocre, os personagens da obra, os quais nunca são nomeados, são basicamente personagens-tipo: a irmã socialite, sua amiga viciada, os traficantes, os policiais etc. A despersonalização pela falta do nome ajuda a demarcar com mais intensidade a proposta de construção de personagens que façam uma representação da decadência moral da sociedade que Chico quis retratar, embora não devamos situar a obra no patamar de um escrito maniqueísta. 

Além da crítica social, estendida a todas as classes, vemos, sobretudo na trajetória do narrador, uma história de vazio existencial provocado pelo esgarçamento de suas relações pessoais. Não é apenas a paranoia, o sonho de estar sendo perseguido que o conduzirá à mórbida comédia de erros em que se envolve, são os laços e afetos frágeis ou desfeitos com família e amigos os responsáveis por sua trajetória trôpega. 

E o sujeito atrás da porta, o que terá sido dele? Só lendo mesmo para descobrir. 

 

 

 

Título: Estorvo

Autor: Chico Buarque

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2021

Páginas: 208

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