[Resenha] Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes

[Resenha] Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes

Sinopse: “Antes da publicação da segunda parte de Dom Quixote, em 1613, Cervantes lança uma outra aventura: Novelas exemplares. Como gênero literário, a novela já existia, mas, como nota o próprio Cervantes, ele é o primeiro a tentá-la na Espanha. Ele experimenta o gênero em todas as direções possíveis, com relatos bizantinos, cortesãos ou picarescos. E mais: busca estabelecer um padrão realista, fala do cotidiano das pessoas, de uma Espanha que podia ser vista da janela de casa. É interessante notar como ele, filho de uma sociedade machista, sabe das dores femininas e pinta mulheres inteligentes e espirituosas, quando outros as queriam apenas lindas e submissas. É exemplar como Cervantes, homem de temperamento satírico, conseguiu despistar a censura, deixando transparecer entre exaltações aos reis e à Igreja, seu país violento e sensual, trapaceiro e cobiçoso, em que o estupro, por exemplo, é aceito com naturalidade, e um casamento é o único sinal de respeito que se tem pelas mulheres.

A edição traz aparatos críticos de estudiosos do autor, notas, poemas em sua versão original e ilustrações.”

Propor-se a escrever qualquer coisa sobre uma obra com mais de 400 anos de história, sobretudo uma que seja considerada entre as mais importantes de um dos maiores nomes da literatura ocidental, tanto que a ele é atribuída a criação do romance contemporâneo, é uma tarefa, digamos, desanimadora. Mas como a proposta aqui não é pretensiosa, deixemos de lado as reservas e falemos sobre as impressões de leitura das Novelas Exemplares.

Antes de mais nada, cabe dizer que, lida a obra, nos perguntamos se nos dias de hoje, a despeito de tanta estupidez que ainda nos cerca, não deveríamos ler o título do livro com uma interrogação no final (Novelas Exemplares?). É uma questão pertinente na medida em que atribuímos à palavra exemplar como aquilo que é “digno de ser tomado como exemplo ou como modelo”, conforme a primeira definição apresentada no dicionário Michaelis online.

E digo isso porque ao mergulhar nas histórias dessa que provavelmente é a obra mais conhecida de Cervantes, depois do Dom Quixote, senti enorme desconforto com as visões de mundo ali presentes: preconceitos, discriminação, intolerância, exclusão, violência, xenofobia e por aí vai. E este incômodo, não sem razão, é maior porque a estrutura textual nos deixa entender que é o próprio Cervantes a compartilhar das ideias que são ali reproduzidas. E nos custa, assim, o esforço de aceitar que um autor com tamanha genialidade, mesmo sendo “um homem de seu tempo”, como muitos dizem agora, possa ter admitido para si concepções que para nós perecem tão absurdas. O próprio Cervantes, no Prólogo, assim nos diz a respeito da justificativa do título:

Chamei-as de Exemplares, e, se olhares bem, verás que não há nenhuma de que não possa tirar algum exemplo proveitoso; e, se não fosse espichar demais este assunto, talvez te mostrasse o saboroso e honesto fruto que se poderia colher, tanto de todas juntas como de cada uma em particular. (SAAVEDRA, 2015, P. 34)i

i SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Novelas Exemplares; trad. Ernani Ssó; Ilust. Vânia Mignone. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

E poderíamos considerar EXEMPLAR dizer que a reparação de um estupro é o casamento da mulher violentada com seu violador? Que a virgindade de uma mulher vale mais que sua vida? Ou que os ciganos são ladrões por sua própria natureza?

Parece que os ciganos e as ciganas vieram ao mundo apenas para ser ladrões: nascem de pais ladrões, criam-se como ladrões, estudam para ladrões e, enfim, acabam ladrões de cima a baixo, de dia e de noite, e a       vontade de furtar e o próprio furto são como que traços inseparáveis neles, que apenas a morte elimina. (SAAVEDRA, 2015, p. 41)

As Novelas, as quais subtraio neste momento o complemento do título por mero despeito, são uma compilação de histórias que invariavelmente reproduzem essas e outras formulações. Podemos depreender do todo que os valores arquetípicos presentes na obra são a nobreza, ou seja, a classe de pessoas nobres e ricas, cuja moral, ainda que para nós meio torta, é o modelo perfeito de virtude; a castidade feminina; a aversão a estrangeiros, especialmente se não europeus de origem, como os ciganos, os judeus e os árabes (chamados de mouros nas novelas); além do preconceito com as classes pobres.

Mas não serei eu a excomungar Cervantes da minha estante nem exonerá-lo de suas visões preconceituosas se assim foi. Isso porque parto do princípio de que uma obra literária também deve incomodar, seja de que maneira for. É por essa via que a literatura direta ou indiretamente contribui com nosso processo de formação humana, apresentando-nos bons e maus exemplos e, sobretudo, nos conduzindo à reflexão crítica sobre o que é bom e o que não é, para ficar apenas num raciocínio maniqueísta e simplista e não nos estendermos.

Não são apenas as tragédias rocambolescas com finais “felizes” a darem as caras nas Novelas. Cervantes inseriu em suas histórias boas doses de humor e de ironia, algumas dessas certamente perdidas no contexto do tempo transcorrido e que tenham escapado dos revisores e tradutores de sua obra. Dois bons exemplos dessas composições encontramos na Novela de Rinconete e Cortadillo, que conta a história de dois jovens que se unem a uma corporação de ladrões em Sevilha, história essa que se aproxima do sub-gênero picaresco; e também na Novela do Licenciado Vidraça, narrativa da vida de um jovem estudante que perde a razão e acredita ser feito de vidro muito frágil. Considerado como uma pessoa de muita sabedoria, vários são os que se consultam com ele. Suas falas, ao mesmo tempo que têm um caráter moralizante, refletem também uma crítica social irônica.

— Vidraça, esta noite morreu na prisão um banqueiro que estava condenado à forca.

Ao que ele respondeu:

— Nesse caso a pressa não foi inimiga da perfeição. (SAAVEDRA, 2015, p. 232)

A Novela e colóquio que houve entre Cipião e Berganza é, talvez, a mais importante das histórias das Novelas. Trata-se de um diálogo entre os dois cachorros nomeados no título. A história começa, na verdade, na novela anterior, a do Casamento enganoso, em que um dos personagens abre um caderno em que se encontra escrita a fábula dos cachorros e começa a lê-la para seu interlocutor. O Colóquio é uma loga conversa em que Berganza conta a Cipião os sucessos por que passou com os vários donos que teve e é também um exemplo do sub-gênero picaresco.

As Novelas Exemplares, para quem já leu o Quixote, são mais uma amostra da habilidade de Cervantes para contar histórias. A imaginação fértil do autor consegue nos prender à leitura, apesar daquilo que já foi dito sobre as visões que ali predominam. Um ponto importante diz respeito à concepção formal dos textos. Em um dos estudos críticos do posfácio, da professora Maria Augusta da Costa Vieira, ficamos sabendo que Cervantes escrevia sob os modelos poéticos vigentes nos séculos XVI e XVII, os quais se baseavam em referências mais antigas, como A Poética, de Aristóteles e Arte poética, de Horácio. Nesse sentido, afastando a própria explicação do autor no Prólogo, poderíamos dizer que as novelas sejam exemplares não no sentido pretensamente moralizante de seu conteúdo, mas no formato de sua composição, abordando vários sub-gêneros, como o picaresco já citado aqui.

Ainda no posfácio, para voltarmos ao tema das atrocidades, somos apresentados (entre outras) a duas informações muito interessantes. A respeito do autor, diz-se que muito pouco (ou nada) se sabe sobre o pensamento de Miguel de Cervantes, ou seja, sobre seu posicionamento em termos éticos, filosóficos, políticos etc. Partindo deste ponto de observação, não se pode, portanto, dizer que as histórias ditas por ele próprio exemplares eram um reflexo daquilo Cervantes concebia como a fina flor da ética e dos bons costumes. Se pensarmos em termos de paralelismo, é muito possível que o conjunto das Novelas Exemplares tenham sido pensados pelo autor para serem também uma espécie de Dom Quixote, de modo que a sátira, de maneira mais velada, não se dirigia agora aos romances de cavalaria, mas à sociedade, afinal de contas, antes de serem publicadas as Novelas precisaram passar pelo crivo da censura da Inquisição. A outra informação diz respeito justamente à estratégia de dissimulação do discurso, de encobrimento daquilo que talvez Cervantes realmente quisesse dizer. Era corrente ao tempo em que foram escritas as Novelas a ideia de que a concepção acontecia somente em relações sexuais em que houvesse prazer (consentimento, portanto). Mas não é o caso que acontece nas histórias Exemplares. A concepção ocorre, mas em nenhum momento Cervantes descreve o ato de violação como algo consentido ou em que suas vítimas tenham sentido prazer no sexo.

Fica aqui esse indício de que Cervantes tenha tido um pensamento mais vanguardista e que não aprovava a visão de mundo predominante de seu tempo. É muito pouco, possivelmente insuficiente para encaminharmos qualquer discussão nesse tema. Mas é preciso que lembremos que já se foram mais de 400 anos de história e muita coisa mudou. Possivelmente, daqui a 400 anos os nossos sucessores (espero que venham a existir) nos condenarão sumariamente por toda a estupidez que temos promovido atualmente, como, por exemplo, destruir, sem recriminação, o ecossistema que nos mantém vivos.

Cervantes, mesmo com as ressalvas que tenhamos em relação às suas possíveis visões de mundo de homem do seu tempo, continuará sendo, sabe-se lá até quando, um dos maiores e mais importantes autores da literatura. Podemos até torcer-lhe o nariz, apontar-lhe o dedo, mas não voltemos tanto no tempo ao ponto de estabelecer um novo Index Librorum Prohibitorum. Leiam as Novelas Exemplares.

Título: Novelas Exemplares

Autor: Miguel de Cervantes Saavedra

Tradução: Ernani Ssó

Ilustrações: Vânia Mignone

Editora: Cosac Naify

Páginas: 544

Há uma nova edição desse livro lançada recentemente pela editora Martin Claret: Novelas Exemplares

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