[RESENHA] TEMPO DE MIGRAR PARA O NORTE, DE TAYEB SALIH

Sinopse: “Com um texto tão enxuto quanto complexo, o sudanês Tayeb Salih nos conduz às margens do rio Nilo para contar a história de Mustafa Said, árabe africano de intelecto notável — mas que carrega consigo um passado trágico, de loucura e morte. Censurado em seu país de origem, Tempo de migrar para o norte ganhou notoriedade mundial e já foi traduzido para mais de 30 idiomas.”

 

Quem acompanha as postagens aqui do blog há mais tempo sabe que eu fui assinante da TAG Experiências Literárias antes que a empresa segmentasse o clube em duas linhas de interesse: TAG Curadoria e TAG Inéditos. A TAG Curadoria, grosso modo, é a ideia inicial do clube, oferecendo aos assinantes livros diferenciados, muitos até fora de catálogo, com a curadoria de algum escritor ou de alguém com bastante bagagem cultural e literária. Já a TAG Inéditos é o novo clube, que procura trazer ao Brasil best-sellers que já são sucessos lá fora, no entanto, ainda inéditos no Brasil.

O legal da TAG (no meu caso em específico, da TAG Curadoria) é o desafio de ler algo fora de sua zona de conforto. Mesmo assim, muita gente acha que pode não valer a pena, pois colocando na ponta do lápis, dá para comprar pelo menos dois livros todo mês só com o valor da assinatura. Eu fiz essa conta e saí do clube. Mas sempre ficava namorando as caixinhas pelo facebook, confesso… Então houve a segmentação, a TAG Curadoria passou a enviar edições exclusivas ainda mais especiais e as condições de pagamento ficaram mais bacanas. Agora é possível, por exemplo, fazer a assinatura anual e ganhar um desconto em relação à assinatura mensal. Deste modo, é possível pensar além do preço, que é superimportante obviamente, e voltar os olhos para a experiência, que é maravilhosa.

Voltei para o clube TAG Curadoria em maio e recebi o livro Tempo de migrar para o norte, de Tayeb Salih, indicação do escritor Milton Hatoum. Foi o meu primeiro contato com a literatura árabe e eu peguei para ler assim que a caixinha chegou. Eu sou do tipo que não pesquisa o livro na internet com base nas dicas que a TAG dá nas redes sociais. Gosto da surpresa, de conhecer o livro e o autor, caso nunca o tenha lido, como foi com Tayeb Salih.

Tempo de migrar para o norte lembra muito O Grande Gatsby na estrutura narrativa: aqui temos um narrador que não é o protagonista da história, apenas conta a história de um sujeito maior, extraordinário. Após sete anos fazendo um doutorado em literatura na Inglaterra, um sudanês — nosso narrador não nomeado — retorna a sua aldeia de origem. O retorno traz a ele sentimentos de pertencimento àquela paisagem às margens do Nilo, mas também há um certo desconforto com as tradições e costumes do lugar. É o que acontece com todo mundo que passa tempo demais longe de casa: é difícil se reconectar, voltar a pertencer inteiramente ao lugar de origem, pois a pessoa muda, já o lugar, na maioria das vezes, não.

De volta à aldeia o narrador percebe que existe um homem que também não pertence inteiramente àquela realidade: Mustafa Said. Descrito como um belo africano muito bem educado, inteligente e viajado, Mustafa Said logo chama a atenção do narrador e vê nele alguém com quem pode conversar abertamente e contar suas aventuras e desventuras na Londres de 1920.

 

Livro + Box + Revista com textos complementares sobre a obra e o curador.

 

“Este romance denso e evocativo, com lances da lírica árabe, narra as viagens e visões de Mustafa Said, dilacerado entre dois continentes. Trata-se de uma complexa sondagem na alma humana, que é também uma reflexão sobre o colonialismo britânico na África e uma crítica implacável aos governantes do Sudão pós-colonial.” (Milton Hatoun, curador da TAG Experiências Literárias – maio/2018)

 

Mustafa Said representa a ruptura, o colonizado que não foi assimilado, mas também não pertence ao passado, como os anciãos do vilarejo em que escolheu repousar. É um homem perdido entre dois mundos, misterioso, e com um grande currículo de mortes em seu nome. O personagem usava de sua aparência exótica aos olhos das mulheres inglesas e extrapolava os estereótipos atribuídos ao seu povo para caçar suas vítimas. Ele seduziu essas mulheres e as levou à loucura, a ponto de algumas delas cometerem suicídio.

O texto de Tayeb Salih é muito rico, com construções bastante poéticas, muito gostoso de ler, até quando toca em temas desagradáveis. Em cerca de 200 páginas ele conseguiu falar de colonialismo, religião, política e costumes, de forma magistral. Não à toa o livro foi proibido no Sudão, principalmente por seu conteúdo sexual.

O que mais me tocou nesta publicação foi um diálogo sobre os tipos de mulheres, no caso as mutiladas e as não mutiladas, que reproduzo abaixo:

“‘As mulheres cristãs’, comentou Bint-Majthub, ‘não entendem da coisa como as mulheres daqui. Não são circuncidadas e tratam a coisa como se fosse um gole de água. As mulheres daqui se untam em óleos, usam perfumes, queimam incenso, vestem camisolas de seda e, quando deitam na esteira vermelha após a oração da noite e abrem as pernas, o homem se sente como Abu-Zaid Alhilali e se, por acaso, estiver sem vigor, logo se revigora.’

Meu avô e Bakri riram.

‘Basta de falar das mulheres da aldeia, Bint-Majthub!’, protestou Wad-Irrayis. ‘As de fora, essas, sim, são mulheres de verdade!’

‘Você é quem está por fora!’, comentou Bint-Majthub.

‘Wad-Irrayis gosta das mulheres não circuncidadas’, comentou meu avô.

‘Juro, Hajj Ahmad, se experimentasse as mulheres etíopes e nigerianas, largaria a masbaha e as orações na hora. O que elas têm entre as pernas é um prato cheio, intato, com todo o seu bem e seu mal. Aqui, cortam-no e deixam-no como uma terra devastada.’

‘A circuncisão é uma das normas do islã’, disse Bakri.

‘Que islã é esse?’, perguntou Wad-Irrayis. ‘Deve ser o seu islã e o de Hajj Ahmad, que não sabem distinguir entre o que lhes faz bem e o que lhes faz mal. Por acaso, os nigerianos, os egípcios e os árabes da Síria não são muçulmanos como nós? Mas eles fazem as coisas direito, deixam as mulheres como Deus as criou, enquanto nós as mutilamos feito animais.’” (p. 81)

N.T.: Abu-Zaid Alhilali é o herói de uma epopeia popular que narra a invasão das tribos árabes de Banu-Hilal ao Magreb.

 

É importante ler esse tipo de coisa escrita por um escritor árabe, pois dito por alguém de fora, dependendo de como se fala, é tido como preconceito cultural. Eu não me importo com esse tipo de julgamento, porque o que acontece com essas mulheres, ainda meninas, é de uma crueldade sem tamanho, em nome de um aprisionamento misógino que algumas pessoas chamam de religião. No livro há ainda outras passagens que mostram o desrespeito com as mulheres e como isso é contemporizado inclusive entre aqueles que teriam o poder de reverter essa situação, homens modernos, usando como desculpa o aspecto cultural da situação.

 

Tempo de migrar para o norte foi uma leitura muito rica, gostei bastante, e foi verdadeiramente uma descoberta para mim, pois eu não conhecia o autor e nunca havia lido algo da literatura árabe. Essa, talvez, seja a maior vantagem de participar de um clube de assinaturas: mais que a surpresa em torno do título, existe a surpresa com a leitura, expande nosso horizonte para algo novo e bom.

 

*** o mimo do mês de maio da TAG Curadoria foi um blend oriental maravilhoso, nunca experimentei um chá tão gostoso em toda a minha vida! Pena que só deu para duas xícaras, porque eu tomaria litros dele! Veja o kit completo no vídeo abaixo:

 

Ficou interessado na TAG Experiências Literárias? Faço parte do clube curadoria, mas você pode clicar aqui e conhecer melhor as duas caixinhas, curadoria e inéditos, e ver qual se adéqua ao seu gosto e estilo!

 

 

Título: Tempo de migrar para o norte

Autor: Tayeb Salih

Tradução: Safa Abou-Chahla Jubran

Editora: Planeta / TAG Experiências Literárias

Páginas: 176

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