[CONTO] ANNE: UMA RELEITURA DE PERSUASÃO, DE JANE AUSTEN

Sinopse: Anne pertence a uma importante, porém empobrecida, família do interior de Minas Gerais. No passado, foi apaixonada por Fred, um inteligente e ambicioso rapaz de família humilde. Teria se casado com ele, mas foi persuadida por sua família e recuou do compromisso firmado anteriormente. Vários anos se passam até que um novo Fred volta ao lugar onde foi desprezado pela família Elias. Agora, ele é um homem bem sucedido, um veterinário respeitado e de boa situação financeira. “Anne” é uma releitura moderna de Persuasão, de Jane Austen: a história de um amor que precisará vencer as barreiras do orgulho e do ressentimento para ser vivido.

 

Anne foi publicado em seis capítulos de forma semanal no Wattpad entre julho e agosto de 2017. Depois, a partir do dia 22 de setembro do mesmo ano, foi publicado em e-book na Amazon, com um capítulo extra. Essa história foi concebida com muito de empolgação, mas quase zero de planejamento e estudo, e desde então eu sinto que poderia ter feito um pouco mais. Eu sinto que poderia (posso e vou, na verdade), contar essa história de um jeito melhor. Foi aí que resolvi retirar a publicação de Anne da Amazon, conforme contei no Instagram no dia dia 27 de abril deste ano (2021). Mas, para registro e, para matar as saudades, resolvi editar esse post (que era sobre o lançamento do e-book, com o primeiro capítulo) para que passasse a conter a história na íntegra. Boa leitura!

 

Anne

Capítulo 1

Minas Gerais, século XXI.

 

O Sr. Walter Elias, da fazenda Élio, em Minas Gerais, era um homem que, em momentos de ócio, não se distraía com mais nada além da leitura do livro de recortes de sua família. Ali tinha um porto seguro nos momentos difíceis e situações desagradáveis ocasionadas, em maior parte, por problemas domésticos. Os jornais antigos mostravam todos os grandes homens que tiveram a honra de carregar o sobrenome Elias.

Quando se cansava de ler sobre seus antepassados, lia fatos de sua própria história, sempre muito bem narrados pelos jornalistas em nível regional e até nacional. Eis um trecho da biografia do respeitável senhor publicada pelo jornal Estado de Minas Gerais:

 

Walter Elias, nascido em 1º de março de 1951, casou-se em 15 de julho de 19-— com Elisabeth, filha de Frederick Stevenson, distinto cavalheiro imigrante da Inglaterra. Ficou viúvo com três filhas ainda bem jovens: Elisabeth, nascida em 1º de abril de 1981; Anne, nascida em 20 de setembro de 1985; e Mariah, nascida em 19 de novembro de 1987.

Orgulhosamente, usando uma caneta de escrita fina e com traços delicados, escreveu, logo após a data de nascimento de Mariah: “casada em 16 de dezembro de 2009, com Carlos Musgrove Filho, herdeiro de Carlos Musgrove, distinto empresário de São Paulo”.

 

Ninguém podia dizer que o Sr. Walter, conhecido por muitos como Dr. Walter, embora nunca tenha concluído um curso universitário, não era um homem atraente. Aos sessenta e seis anos, era um senhor respeitado, que ainda atraía olhares, inclusive de mulheres mais novas, como bem gostava de observar. É bem verdade que a estima adquirida em sua comunidade se deve, além do sobrenome Elias, à lembrança que muitos ainda guardavam de sua falecida esposa, que era uma flor de candura e sabia ignorar os defeitos do marido.

Sr. Walter tão logo enviuvou, teve a valiosa ajuda de D. Glória, uma grande amiga de sua finada mulher, para o término da criação das filhas. Ela também é uma viúva e de boa família, mas, contrariando todos os mexericos e expectativas da comunidade, os dois não se casaram. Não havia necessidade, tampouco desejo da parte de Sr. Walter. Ele se considerava um bom pai e viveria o resto de sua vida em função das filhas, sobretudo da mais velha, fisicamente semelhante à mãe, mas de temperamento e caráter iguais ao seus. Mariah havia se casado na primeira boa oportunidade que teve, e Anne… Bem, Anne sempre esteve a cargo de D. Glória, sua madrinha de batismo. Embora fosse a imagem e semelhança do pai, ele não tinha paciência para os arroubos de Anne e seu diferente jeito de ser.

No momento, irritava-se facilmente com os pitacos que a filha dava em relação à situação financeira da família.

— A fazenda não produz como antes. Na verdade, não produzimos nada de relevante, não nos automatizamos e gastamos muito dinheiro com frivolidades! – Dizia Anne.

— Elisabeth é uma ótima senhora para a Fazenda Élio. Se os negócios vão mal, a culpa é da economia brasileira, que está em frangalhos! – Defendia o Sr. Walter.

— Querido pai, não podemos culpar a economia pelos gastos frequentes e as festas que vocês dão. Daqui a pouco, não teremos como pagar os salários dos empregados! A melhor saída, como eu já disse mais de uma vez, é arrendar a fazenda. Pelo menos parte dela. O Dr. Gonçalo tem algumas pessoas para nos indicar. Vamos ouvi-lo!

Dr. Walter se enfurecia toda vez que percebia que Anne tinha razão. A serenidade com a qual ela lidava com a situação o fazia quase detestá-la. Certamente não se importava em deixar a fazenda, se virava bem no meio de gente pobre, e se achava independente, pois tinha um emprego. Mas Elisabeth, pobre Elisabeth, o que seria dela, e dele próprio, não podendo mais serem os senhores da Fazenda Élio? Infelizmente não tinham saída, teriam de arrendar a fazenda. Mas seria por pouco tempo, tinha certeza. Seriam férias do campo! Enquanto isso, viveriam em uma casa não muito longe dali, uma residência mais modesta, comparada à sede da fazenda. Muito bem localizada, essa casa ficava de frente para o Paço Municipal e suas belas árvores e mesinhas de jogar xadrez.

 

***

 

— Dr. Walter, tenho os arrendatários perfeito para o senhor! – Disse o animado advogado da família, Dr. Gonçalo. – Um militar aposentado e sua esposa. Não têm filhos e desejam a calmaria do interior. Não tendo achado uma propriedade para comprar, estão dispostos a arrendar a Fazenda Élio; a área da casa grande, os estábulos e uma parte do campo onde fica o pomar. A parte agrícola, como o Sr. sabe, será arrendada para a indústria.

— E esse militar por acaso tem dinheiro? – Perguntou Sr. Walter.

— Sim, e muito! Nem quis negociar. É de família abastada, se afastou da Aeronáutica por problemas de visão, pelo o que eu pude entender. – Disse o advogado.

Sr. Walter bufou e debochou, sob o olhar de reprovação de Anne:

— Então um velho cegueta vai ser o senhor da minha fazenda?

— De maneira alguma, Dr. Walter. Ele não é cego, nem velho. Bem, deve ter a idade do senhor, talvez um pouco menos. – Dr. Gonçalo riu e logo se envergonhou com o olhar crítico de Sr. Walter. – Ele saiu da Aeronáutica porque lá não admitem pilotos com problemas de visão que podem se agravar com o tempo. E ele já tinha muitos anos de serviço, pelo que pude apurar. Ademais, o cunhado dele conhece bem a região. É um renomado veterinário, cuidará dos cavalos enquanto estiver aqui. Andrade é o sobrenome dele, mas não me recordo o nome.

Sr. Walter franziu o cenho ao perceber Anne pálida como um fantasma.

— Não conheço ninguém com esse sobrenome. – Disse Sr. Walter.

— Frederick. O nome dele é Frederick. – Respondeu Anne de forma quase inaudível.

— Ah, então vocês o conhecem? Ótimo! Vou dar andamento à papelada e em breve lhe procuro, Dr. Walter, para finalizarmos a transação e assinarmos o contrato.

Sr. Walter acompanhou o advogado até a saída e foi tratar com Elisabeth os detalhes da decoração da casa da cidade, pois vários objetos teriam de ser substituídos ou acrescentados, agora que a família Elias estava de mudança. Anne ficara jogada em sua poltrona favorita, com o pensamento apenas em uma pessoa.

— Em pouco tempo ele estará aqui novamente. Fred estará aqui.

 

Capítulo 2

 

Se há alguns anos alguém dissesse a Fred que ele retornaria à fazenda Élio por livre e espontânea vontade, ele certamente não acreditaria. Aquele lugar guardava muitas lembranças de sua juventude, quase todas ligadas a Anne.

Era um homem diferente agora. Quase dez anos se passaram desde que recebera o bilhete de Anne desistindo de se unir a ele. Cresceram juntos, mas ela disse apenas uma única palavra para escorraçá-lo de sua vida, sem mais nem menos. Fora um tolo em acreditar que ela era diferente. Anne era uma Elias, e a vaidade é o único sentimento que eles conseguem manter por muito tempo. Ela não poderia suportar uma vida de privações, sem os luxos da fazenda. Não podia largar tudo e seguir um capiauzinho sem eira nem beira, como Dr. Walter gostava de repetir para quem quisesse ouvir.

— Fred? Aquele capiauzinho? O bobo do pai dele quis dar um nome inglês para ele, uma homenagem ao meu finado sogro. Pensou que assim ganharia a minha simpatia. Um capiau! Mal sabia rabiscar o próprio nome! Teve sorte de escreverem certo seu nome lá no cartório, ele mesmo não saberia ditar. Mas o mal-agradecido do rapazote só gosta de ser chamado de Fred. Não tem brio para carregar o nome de um lorde inglês!

Não era fácil ouvir todo o tipo de insulto do pai da mulher que amava, mas por Anne valia a pena. Pelo menos Fred achava que sim, até receber o tal bilhete.

Seguia dirigindo, divagando sozinho. No carro, Dire Straits era sua companhia constante. Romeo and Juliet tocava quando ele percebeu que estava já bem próximo ao seu destino.

— Que ironia! O capiauzinho agora tem boa renda e conhecimento técnico para tocar a fazenda. E em breve também serei um doutor! Mas um doutor de verdade, diplomado. Não uma pessoa que impõe essa forma de tratamento para humilhar os outros. Serei Dr. Fred. Sim, Dr. Fred! Em uma terra onde todo Francisco vira Chico e todo José vira Zé, por que eu, que tenho esse nome em inglês, não posso ser Fred?

Frederick Andrade, médico veterinário, bem-sucedido, podia viver em qualquer lugar do Brasil, mas decidiu aceitar o convite da irmã e do cunhado e passar uma temporada na fazenda Élio. Seguia repetindo o fato, ora em voz alta, ora em pensamento. Não podia negar que temia o retorno à fazenda, afinal sabia que Anne continuava morando por lá. Pelo menos até o Dr. Walter arrendar a propriedade. Certamente ela viveria em algum lugar na cidade, mas isso não era de sua conta. Na verdade, Fred estava decidido a não trocar nenhuma palavra com Anne, caso a visse. Com sorte, não a veria.

Ele agora não era mais um funcionário dos Elias. Seria respeitado, tinha certeza. Aproveitaria a oportunidade para rever os amigos que permaneceram vivendo nos arredores da fazenda.

Não criaria raízes, nem se envolveria com ninguém. Não precisava se importar com Anne. Tanto tempo havia passado! Não havia em seu peito sequer uma centelha do amor que outrora sentira por ela.

Fred tinha certeza. Tinha toda certeza do mundo.

Até o carro parar na entrada da fazenda Élio.

 

 

Capítulo 3

 

Pouco mais de trinta dias passaram desde que Anne deixara a fazenda Élio. De lá, levou apenas sua poltrona e alguns de seus livros. Contrariando os planos do pai, não foi morar no casarão em frente ao Paço Municipal. Não fazia sentido continuar morando com o Sr. Walter e Elisabeth, então alugou um pequeno apartamento no centro da cidade, não muito longe da família, mas distante o suficiente para ter privacidade.

Em todo o lugar, o assunto era a chegada de Fred. O veterinário, outrora um simples funcionário da fazenda Élio, era fonte de interesse por parte das fofoqueiras de plantão. O rapaz, que passara despercebido durante boa parte de sua juventude, agora tinha umas três pretendentes, no mínimo, dispostas a ganhar seu coração e sobrenome. Falava-se que o cunhado dele em pouco tempo compraria a fazenda, e ele certamente ficaria por lá.

Anne, a contragosto, sabia de todas as fofocas. As pessoas lhe contavam sobre Fred como se ela nunca o tivesse conhecido. Amnésia seletiva, ela concluiu.

Muitos dias se passaram com Fred circulando pela cidade e, ao que parecia, apenas ela ainda não o tinha visto. Até o pai de Elisabeth se encontrara brevemente com ele na fazenda! Mas era melhor assim. Desde que tivera certeza da chegada dele, Anne não parava de pensar em tudo o que viveram juntos. Não sabia precisar o momento em que iniciaram o namoro. Quando deu por si, já estava apaixonada e comprometida de corpo e alma com Fred. Se fechasse os olhos por um instante, se lembrava dos detalhes de cada momento da tarde em que ficaram noivos.

 

Dez anos antes

 

Sentia-se feliz junto ao mar. Seu barulho e a maresia a preenchiam por inteiro. Poderia ficar ali por toda a eternidade, apenas contemplando o litoral.

— Você não acha lindo o mar? – Anne perguntara a Fred.

— Você é ainda mais bela! – Respondeu Fred, com seu olhar apaixonado que Anne conhecia tão bem.

Ela sorriu não só pelo elogio, mas também de si mesma. Em outros tempos, poderia achar um diálogo como esse a coisa mais brega do mundo. Mas o amor era brega, ela tinha certeza. Estava docemente apaixonada.

Noivaram ali mesmo, na praia, com a benção do entardecer. Fred havia providenciado tudo. Depois pararam perto de um charmoso restaurante, e “Your latest trick”, do Dire Straits, começara a tocar. Fred cantava alguns trechos da música, bem baixinho, ansioso por seu futuro ao lado de Anne. Sabia que ela se casaria com ele. Ele não poderia ser de mais ninguém que não dela.

 

I don’t know how it happened

It all took place so quick

But all I can do is hand it to you

And your latest trick.[1]

 

Do restaurante, levaram apenas uma garrafa de vinho, que foi consumida enquanto o sol se despedia daquele dia mágico. Seria possível viver uma vida inteira assim, tão feliz? Anne tinha até medo de pensar. Ficaram na praia até o dia nascer, aproveitando cada segundo da companhia um do outro. Fred não precisou dizer qualquer palavra. Abriu a caixinha vermelha, retirou o anel e o colocou no dedo anular direito de Anne. Era o dia mais feliz de suas vidas. O primeiro de muitos que viriam. Com eles não havia juventude ou inexperiência: suas almas eram conhecidas de outras vidas, entrelaçadas eternamente pelo amor que ambos sentiam. Tudo era natural, perfeito. Mal podiam esperar para voltar à fazenda e contar a novidade à família.

 

Ao recordar aquele tempo, Anne tinha dificuldade de explicar o que havia acontecido. O pai e a irmã mais velha torceram o nariz para a futura união. Mariah estava cansada demais ou ocupada demais para emitir uma opinião e preferiu usar da mesma atitude que o pai. Sua madrinha se opusera tão fortemente ao noivado, dando tantos motivos, com tanta firmeza de opinião, que Anne, persuadida de que a melhor decisão era romper o noivado, mandou um funcionário da fazenda devolver o anel a Fred com um bilhete rascunhado a lápis dizendo, simplesmente, desculpe.

Poucos dias depois, ele foi embora para Belo Horizonte, e ela permaneceu ali, à espera de algo que a tirasse daquele devaneio que fora o seu breve noivado. Fechara-se em seu próprio coração, tendo apenas suas memórias e alguns lugares da fazenda como testemunhas de que o acontecido entre Fred e ela fora verdade. Para todas as outras pessoas, era como se nada tivesse acontecido. Ninguém ousara falar sobre o relacionamento entre Anne e um simples funcionário da fazenda de seu pai.

 

***

 

Anne não acumulou riquezas ou títulos acadêmicos. Colunista de cultura e arte de alguns jornais da capital, assumia ocasionalmente cargos comissionados em prefeituras diversas – os prefeitos adoravam ostentar o belo e inteligente exemplar da família Elias em seu secretariado. Nas horas vagas, cavalgava livre pela fazenda.

Seus gostos e hábitos eram frequentemente criticados pela madrinha, D. Glória, defensora da ideia de que a afilhada deveria se casar com o primo William Elias e assim manter e reafirmar os laços da família. Para a velha senhora, Anne era uma joia rara, mas que ainda precisava ser lapidada. Afinal, era sua missão cuidar da filha de sua melhor amiga, em amor e respeito à sua memória.

— Madrinha, a sua bênção. Já foi até a fazenda Élio conhecer seus novos vizinhos?

— Minha querida, Deus te abençoe. Não tenho interesse algum na irmã por parte de pai daquele rapaz. – Respondeu D. Glória. – Não sei quando, mas vou acabar tendo que ir lá fazer uma visita social.

— Então eu irei com a senhora, caso queira me acompanhar hoje à tarde. – Disse Anne, corando.

— O que pretende fazer na fazenda, Anne? Não me diga que vai voltar a se encontrar com aquele Zé ninguém no meio do mato! – D. Glória se exaltou.

Anne respirou fundo, parecia ter voltado no tempo.

— Eu preciso agradecer a D. Lúcia e seu esposo por permitirem que a minha égua Marajó continue nos estábulos até que eu decida o que fazer com ela. Ela me enviou um bilhete pelo Tobias dizendo que eu seria bem-vinda sempre que quisesse ver a Marajó e também cavalgar pela área da fazenda arrendada por eles.

Dona Glória fitava Anne, incrédula.

— Madrinha! Sabe, a égua não cabe no meu apartamento. – Anne tentou ser divertida.

— Isso é um disparate! Na verdade, são dois disparates! O primeiro é você precisar de permissão de uma fulana que ninguém sabe de onde veio para entrar na sua fazenda. O segundo é você querer fazer amizade com essa gente. E eu também não engoli essa de você morar de aluguel em um apartamento minúsculo. Você poderia muito bem morar aqui comigo. Ou continuar com o seu pai.

— Não vou fazer amizade, madrinha. Vou apenas agradecer. E não vamos brigar novamente pelo apartamento. Lá é o local que eu escolhi viver, pelo menos por enquanto. Se a senhora não me acompanhar até a fazenda, eu irei sozinha. – Disse Anne, tentando parecer decidida.

— Tudo bem. Eu vou. Será mais fácil me enturmar com você por perto. Você é um amor de pessoa, Anne. Todos gostam de você! – D. Glória disse, contrariada.

 

Anne tinha suas dúvidas se era realmente tão benquista por todos, mas era bem verdade que tinha facilidade para fazer amigos. Era comunicativa e gostava de um dedinho de prosa com quem estivesse disposto a lhe contar boas histórias.

A verdade é que tinha receio de ir sozinha até a fazenda. Não conhecia a irmã de Fred, não sabia o que ela podia pensar, ou o que ela sabia sobre o seu frustrado noivado. O bilhete enviado por Tobias fez com que ela tivesse vontade de conhecê-la, mas ainda assim tinha medo do que encontraria quando voltasse ao seu antigo lar.

 

***

 

Na fazenda, toda a inquietação que Anne tivera em relação à sua ex-futura cunhada se provaram errôneas. Lúcia era uma pessoa meiga e simpática, e seu marido fez o possível para que Anne e D. Glória se sentissem em casa. Mesmo D. Glória teve que reconhecer a amabilidade da irmã de Fred. Em pouco tempo, as duas estavam conversando tão animadamente, que pareciam amigas de longa data. Anne tentava, mas não conseguia prestar atenção na conversa. Seu coração disparava a cada porta que abria e a cada passo que ouvia na escadaria da entrada de casa. Tinha um misto de medo e ansiedade, imaginando que Fred chegaria a qualquer momento.

— Anne, querida, que falta de atenção a minha. – Disse Lúcia. – Estamos aqui conversando sobre frivolidades, enquanto, aposto, você gostaria de ir ver a Marajó e dar uma volta por aí! Vejo que veio vestida para isso!

Anne sorriu, encabulada. Era verdade, havia vestido uma calça jeans e calçado a bota de montaria. Agora que não morava mais na fazenda, precisava aproveitar as oportunidades que surgiam para poder cavalgar livremente. Não gostava de clubes de jóquei, mas precisaria aprender a usar seus serviços. Era isso ou correr o risco de enfartar cada vez que fosse até a fazenda.

Ignorando os olhares de reprovação de D. Glória, Anne rumou para os estábulos. Tudo estava bastante calmo e organizado, bastante diferente da época em que o homem de confiança do seu pai, o velho Sebastião, vivia berrando com os animais e com os funcionários. Anne caminhava lentamente, a saudade daquele lugar já era muito grande.

Ouviu alguém se despedindo, mas não soube dizer quem era. Ao se virar para ir até a baia onde ficava a sua Marajó, no final do segundo corredor dos estábulos, a imagem do homem que havia anos povoava seus pensamentos surgiu bem à frente. Apenas um pouco mais forte e com os cabelos dando os primeiros tons de grisalho, Fred estava sereno, travando um peculiar diálogo com a égua de Anne. Tendo ouvido passos, ele se virou lentamente e, ao reconhecer a visita, seu doce olhar petrificou.

 

 

 

[1] Eu não sei como aconteceu

Tudo foi tão rápido

Tudo o que eu posso fazer é me entregar a você

E a seu último truque. – Your latest trick, Dire Straits. Fonte: letras.mus.br

 

Capítulo 4

 

— Fred! – Anne conseguiu cumprimentá-lo. O coração disparado como se ela fosse novamente uma adolescente. – Vejo que você já conheceu a minha Marajó.

Ele parecia estar processando a informação. Deu um pequeno passo, mas não se aproximou muito de Anne.

— É um belo animal. Padrão de competição. – Disse Fred, por fim.

— É, eu sei. Mas não me interesso mais por essas coisas. – Ela respondeu. – Deixei o glamour para Elisabeth, que leva mais jeito para os holofotes. – Riu. Não sabia direito o que dizer, a cabeça estava a ponto de dar um nó.

— Estou treinando o Tobias para cuidar dos cavalos. Vai ser bom para ele e para os animais quando eu for embora. – Disse Fred.

— Que ótimo! Você fez um ótimo trabalho aqui. Tudo está tão organizado e silencioso, nem parece o estábulo que o Sebastião cuidava. – Anne disse.

— É, é verdade. O velho Tião só sabia maltratar os animais e as pessoas que trabalhavam aqui. Lembro o quanto você e ele brigavam. Deixavam o Dr. Walter maluco! – Fred riu, mas logo se recompôs.

— É bom ver você de novo, Fred. – Anne disse com a voz quase falhando.

Ele sorriu, mas recuou quando ela deu um passo para cumprimentá-lo. Em seguida, tocou no chapéu em um breve aceno e foi embora.

 

***

 

— Nossa, Anne, você parece que viu um fantasma! – Disse D. Glória. – Sente-se aí, vou pedir um copo d’água para você.

  1. Glória já se sentia amiga de Lúcia, embora a presença de um certo veterinário a incomodasse muito. Se a amiga sabia de alguma coisa do passado ou do presente, fingiu bem ao deixar transparecer que só conhecera Anne havia pouco tempo e como a filha do arrendatário da fazenda.

Por mais que a amizade fosse vantajosa, tendo em vista que Lúcia poderia ser a futura dona da fazenda Élio, D. Glória tinha outros planos para Anne. E fantasma nenhum do passado iria atrapalhar os seus planos.

Lúcia entregou a água para Anne, preocupada com o estado da moça. Cavalgada alguma faria uma pessoa ficar tão nervosa quanto ela estava. A desculpa de que o sol estava forte também não convencia. Se Anne estava do jeito que estava, ela podia imaginar o estado do irmão. Mas daria tempo ao tempo, tinha esperanças de que tudo ficaria bem.

— Anne, eu conversei com a sua madrinha, e ela me apoiou na ideia de fazer uma grande festa junina aqui na fazenda. O que você acha? – Lúcia perguntou, tentando trazer Anne de volta para o presente.

— Acho ótimo. Se precisar de ajuda com alguma coisa, pode contar comigo. – Anne respondeu com sinceridade. Mal conhecia Lúcia, mas tinha certeza de que ela era uma boa pessoa.

— Ótimo! Discutiremos os detalhes em outra hora. Talvez agora não seja um bom momento. – Disse Lúcia.

— Sim, talvez em outro dia. Você pode me ligar quando quiser. Ficarei feliz em ajudar. Agora acredito que seja melhor irmos embora, não é, madrinha? Ainda quero visitar o meu pai antes de ir para casa.

 

***

 

Definitivamente Anne não estava preparada para o reencontro com Fred. Vinha repassando em sua memória a peculiar conversa que tiveram e não podia acreditar. Era difícil ter certeza se ele sentia raiva dela, mas certamente ainda estava magoado. Ele tinha todo o direito, e ela não podia fazer nada. Tanto tempo havia passado! Anne tinha esperanças de que o tempo pudesse curar tudo, mas talvez estivesse enganada.

— Anne! Anne! – D. Glória gritou. – Não está prestando atenção no que eu estou falando? Onde você está com essa cabeça?

Anne olhou para sua madrinha, era difícil mentir para ela. D. Glória era perspicaz e conhecia demais a afilhada, que nunca fora boa em dissimulações.

— Desculpe, madrinha. – Anne respirou fundo. – Vi o Fred no estábulo. Fiquei um pouco assustada e envergonhada por tudo o que aconteceu no passado e… É só.

  1. Glória suspirou.

— Não aconteceu nada no passado. Só uma pequena imprudência de dois jovens que tinham dificuldade de entender os seus devidos lugares no mundo. – D. Glória respondeu.

Anne manteve os olhos na estrada. Não teve vontade de responder a madrinha e também não tinha disposição para tal. Estava se sentindo sufocada com o passado, os sentimentos antigos pareciam mais vivos do que nunca.

Mas ela ficaria bem, tinha certeza que ficaria. Anne sempre superava.

— Talvez não seja boa ideia você ajudar a Lucia com a festa junina. Eu mesma posso ajudá-la. – Disse D. Glória. – Ela permitiu que você levasse o Willian com você. Ele vai ficar muito feliz com o convite.

— Como quiser, madrinha. Se a senhora e o William ficarão felizes, eu também devo ficar.

Glória abriu a boca, mas não disse palavra. Sabia que Anne estava magoada.

 

***

 

Enquanto isso, no casarão do Sr. Walter, a grande notícia era a visita de Mariah, que passaria alguns dias com o pai, a pedido dele próprio, a fim de conhecer os novos moradores da fazenda Élio e, obviamente, participar da grande festa junina.

— Pai, não podemos fazer convites para a festa dos outros! – Disse Anne, abismada com a atitude do Sr. Walter.

— É a minha fazenda! Ademais, o marechal me deu carta branca. É uma honra para eles morarem na fazenda Élio. Não têm berço. As paredes dessa casa têm mais refinamento que aquela gente. Sobretudo o veterinário e a irmã dele.

— Não seja chata, Anne! – Emendou Elisabeth, que chegara a tempo de concordar com a inacreditável fala do pai logo depois de gastar uma pequena fortuna em roupas para a festa. – Um convidado a mais ou a menos não fará diferença. Praticamente todo mundo que nós conhecemos vai estar presente no arraiá. Tá com medo de alguém fisgar o seu veterinário bem na sua frente? Ou você pensa que eu não sei dos seus segredinhos?

— Não é meu veterinário, e eu não tenho segredinho algum. – Anne disse, enfurecida. – Já estou imaginando nós todos chegando juntos, os carros enfileirados, praticamente os donos da festa. Um papelão!

Os argumentos de Anne, entretanto, foram todos em vão. E antes mesmo que ela acabasse de falar, todos já estavam conversando sobre outros assuntos. Mariah chegaria em breve para a festa, acompanhada do marido, dos filhos e também da cunhada Luísa.

A caçula da família Elias só era requisitada pelo pai quando este tinha necessidade de estabelecer ou fortalecer algum contato usando da influência do genro. Todos sabiam disso, inclusive a própria Mariah, que pouco se importava com a situação. A verdade é que o Sr. Walter estava bem satisfeito com a filha mais nova morando bem longe dele. Nunca tivera paciência para os chiliques e enxaquecas de Mariah. E ela, por conseguinte, sempre desejou viver bem longe do interior. Nunca suportou a vida no campo. O casamento com o empresário paulista fora o arranjo perfeito para ambos.

 

***

 

Mais tarde, em seu apartamento, Anne só conseguia pensar em Fred. Sabia que sentiria algo ao revê-lo depois de tantos anos após rompimento do noivado, mas não tinha ideia de que seria do jeito que foi. Acabou se descobrindo ainda apaixonada por ele e não podia nem imaginar vê-lo com outra mulher. Mais do que ciúmes, ela sentia o coração doer por ter perdido o carinho de Fred, por perceber que ele evitaria a todo custo se aproximar dela.

 

No estábulo, Fred dava boa noite a Marajó, desejando em seu íntimo esquecer definitivamente Anne. Não podia negar o abalo que sentiu ao vê-la, mas sabia que tudo estava acabado entre eles. Tempo demais havia passado! Ela continuava tão linda quanto ele tinha lembrança. Desejou tocar a pele macia de Anne, sentir o cheiro dos seus cabelos e beijá-la no momento em que a viu. Mas não devia continuar pensando em Anne, precisava esquecê-la. Em breve, ela se casaria com William, e ele a perderia de vez.

 

 

Capítulo 5

 

A festa junina da fazenda Élio, organizada pelos novos moradores da propriedade, era o assunto do momento na região. A lista de convidados era extensa e incluía, para o desgosto de Sr. Walter, grande parte dos sitiantes do entorno. Uma ralé, na visão do antigo fazendeiro.

— Eu realmente não acredito que o marechal convidou tanta gente fora dos nossos círculos! – Disse Sr. Walter. – Vou alertá-lo para que reforce a segurança da minha propriedade.

— Não se preocupe com isso, pai. – Disse Anne. – Estou ajudando a D. Lúcia, e tudo vai indo muito bem. Eu mesma sugeri a inclusão de vários dos convidados.

Sr. Walter arregalou os olhos, o semblante visivelmente alterado.

— Não sei como ainda me surpreendo com você, Anne. Às vezes, nem parece uma Elias!

— Mas eu sou, pai. Conforme-se com isso. – Disse Anne, altiva.

Ela também sentia falta do campo. Mas sua saudade não tinha relação com um sentimento de posse: Anne amava correr livre pelos pastos, cavalgar, sentar aos pés de uma árvore para pensar na vida. Passara horas e horas na companhia de um bom livro debaixo do grande jambeiro localizado a alguns quilômetros da casa principal. Lá também, alguns anos antes, fora o lugar dela e de Fred, onde conversavam sobre todas as coisas e gozavam da companhia um do outro. Mas isso tudo ficou definitivamente no passado, e ela teria de aprender a se acostumar às novidades.

 

***

 

Da comitiva de Mariah, certamente quem mais estava aproveitando a estadia no interior era Luísa. Bela e animada, logo fez muitos amigos, sendo presença frequente em bares e festas. Sua companhia favorita, ela não se furtava em dizer, era Fred.

— Sei que ele é assunto proibido aqui, Mariah – disse Luísa –, mas eu só quero me divertir. Quem sabe eu não arranje um bom motivo para viver no campo?

— Não tenho disposição para essas conversas. – Resmungou Mariah. – Minha cabeça está estourando, caso queira saber. No mais, não quero confusão com a Anne.

— Ela não me parece ser de confusão. – Respondeu Luísa. – Na verdade, eu até gosto dela. Bem, gostaria mais se ela não tivesse namorado o Fred. – Riu.

Mariah suspirou e se deitou no sofá. Não tinha disposição nem para os próprios problemas, que dirá para os assuntos de Luísa. Ou de Anne.

 

***

 

Na fazenda, tudo estava lindo! A festa junina de D. Lúcia e do Marechal, como Fábio ficara conhecido na região, seria tão boa quanto as que a mãe de Anne fazia anualmente, em um passado distante. Todos os antigos funcionários concordavam com isso, especialmente no que dizia respeito aos convidados, pois a falecida Elisabeth fazia questão da presença dos vizinhos, inclusive os menos abastados.

— Não vou me cansar de te agradecer, Anne! – Disse D. Lúcia, animada. – Sem a sua ajuda, eu não sei o que eu faria!

— É um prazer para mim, Lúcia. Só peço desculpas pela minha madrinha, que não pôde vir. Ela deve estar ocupada com alguma outra coisa.

— Tudo bem, estamos dando conta de tudo perfeitamente. Desculpe a minha franqueza, mas tenho a impressão que a Glória não gosta muito do meu irmão. Acredito que seja pelo noivado de vocês, há alguns anos.

Anne, bastante constrangida, depois de alguns segundos, se limitou a dizer:

— Então você sabe.

— Sei de bastante coisa, Fred é meu irmão. – Disse D. Lúcia com doçura em sua voz. – Mas não sei de todos os detalhes, ele não gostava de falar sobre isso, e eu o respeitei, para que ele ficasse à vontade em minha casa e pudesse estudar com tranquilidade.

Anne apenas assentiu.

— Quando Fábio se aposentou, finalmente pudemos voltar a conversar sobre nos mudarmos para o interior, para a zona rural. Era um antigo plano nosso, sabe? – D. Lúcia disse, nesse momento com uma voz mais alegre. – Enfim, eu imaginei que, vindo para esta região, Fred finalmente pudesse resolver essa questão do passado. O destino se encarregou de nos trazer justamente para esta fazenda. Achei ser sinal dos deuses.

— De repente, é. – Disse Anne, mal contendo a tristeza em sua voz. – Soube que Fred e Luísa, a cunhada da minha irmã, estão namorando…

— Mas eu não sei de nada disso! – Respondeu D. Lúcia, surpresa. – É verdade que eles têm se visto, mas não acredito que seja um namoro.

Anne ficou calada, e D. Lúcia prosseguiu:

— No mais, foi uma surpresa chegar aqui e descobrir que você acabou de ficar noiva.

— Como é? Eu, noiva? – Disse Anne, atônita.

— Sim. Foi o que me disseram… – D. Lúcia disse, constrangida. – A Glória me contou…

— Minha madrinha está louca! – Anne disse um pouco mais alto do que gostaria. – Deixe-me adivinhar: o nome do meu noivo seria William Elias?

— Sim, eu… – D. Lúcia estava visivelmente confusa.

— A madrinha Glória acha que eu sou uma criança e que pode mandar e desmandar em mim! – Anne disse, irritada.

— Desculpe, querida, eu… eu não sabia… – Disse D. Lúcia, envergonhada.

Anne respirou fundo e afirmou com um sorriso tranquilizador:

— Não precisa se desculpar, imagina!

— Então não há nenhum noivado?

— O último anel de noivado que eu usei aqui – Anne disse, mostrando a mão sem anéis à Lúcia – foi o seu irmão quem me deu.

— Sinto muito por toda essa confusão, Anne. Às vezes penso que nunca deveríamos ter vindo para a fazenda Élio. – Disse D. Lúcia.

— Posso lhe fazer uma confidência, Lúcia? Mas eu gostaria que ficasse apenas entre nós.

— Claro, minha querida.

— Não houve um só dia, desde que eu escrevi o maldito bilhete cancelando o meu compromisso com Fred, que eu não tenha amargado em arrependimento.

 

***

 

A festa estava animada, muita gente se fartando com as deliciosas comidas típicas de São João e dançando em volta da fogueira. O DJ alternava uma sequência de músicas de quadrilha com baladas românticas, servindo tanto para o povo recuperar o fôlego, quanto para propiciar conversas ao pé do ouvido.

Em uma dessas pausas do arrasta-pé, uma escolha inusitada: Your Latest Trick começara a tocar. Era uma das músicas favoritas de Anne, lembrança de um dos melhores dias de sua vida. Assim também era para Fred.

Ouvindo a melancólica canção, poucos podiam imaginar o que se passava na cabeça daqueles dois. A música do noivado! Em lados opostos do terreiro, eles cantavam baixinho, olhos perdidos no fogo, que teimavam em procurar o par que também entendia muito bem o que aquela letra queria dizer.

 

My door was standing open

Securit was laid back and lax

But it was only my heart got broken

(…)

Now it’s past last call for alcohol

Past recall has been here and gone

The landlord finally paid us off

The satin jazzmen have put away their horns

And we’re standing outside of this wonderland

Looking so bereaved and so bereft

Like a Bovery bum when he finaly understands

The bottle’s empty and there’s nothing left

I don’t know how it happened

It all took place so quick

But all I can do is hand it to you

And your latest trick[1]

 

As últimas frases, o último refrão, Anne cantou baixinho, olhando para Fred. E ele fez o mesmo de onde estava. Os últimos acordes tocaram, e os dois permaneceram presos, um ao outro, através do olhar. Então o DJ voltou com sua programação dançante, e o momento que Anne e Fred haviam compartilhado passou.

 

***

 

— Eu sinto muito, Anne, que você e o Fred não tenham se casado. – Disse Tobias, pegando Anne de surpresa. – Não há uma viva alma aqui nesse lugar que não saiba da história de vocês dois.

Diante da afirmação do rapaz, ela sorriu melancolicamente.

— O amor às vezes é assim. Duradouro para alguns, brisa passageira para outros. – Anne disse enquanto observava Luísa e William em uma animada conversa. – Tempo demais passou, meu querido afilhado. Os homens não amam por tanto tempo assim… Vai, vai se divertir, que agora eu virei uma chata desanimada.

Tobias segurou a mão de Anne, em apoio e carinho à sua jovem madrinha, e foi mesmo se divertir, a deixando apenas com seus pensamentos. Mas não tardou até que ela fosse procurada por William.

— Anne, fiquei sabendo que estamos noivos! Por que você não me disse nada?! – William falou, mal podendo conter as gargalhadas. – Seria uma honra, mas nós não daríamos certo juntos, eu já entendi. Há algum tempo, você teria me feito o homem mais feliz do mundo, se tivesse dito sim. Talvez eu tivesse tido mais sorte com a Elisabeth.

Anne riu. Amava o jeito brincalhão do primo. Os dois eram bons amigos, até D. Glória começar a insistir em um casamento entre os dois.

— Nem preciso dizer que essa fofoca foi obra da madrinha Glória, ou preciso? – Anne respondeu, se divertindo pela primeira vez com a situação. – Entenda-se com ela!

— Vou me entender com aquela beldade ali, a Luísa! – Disse William, acenando para a jovem de São Paulo. – Acho que estou apaixonado!

— Não sei o que colocaram no quentão dessa festa, mas já sei que devo passar longe dele. – Anne riu. – William, apaixonado? Luísa é uma boa garota, não vá partir o coração dela!

— Anne, priminha, acho que é mais fácil eu sair de coração partido dessa. – William respondeu, dessa vez, sério. – Bem, não seria a primeira vez.

Os primos trocaram um rápido abraço e William voltou para a festa.

 

Anne se preparava para ir embora, quando ouviu Tobias gritando o nome dela.

— Madrinha! Anne! Caramba, finalmente te achei! – Disse o rapaz, quase sem fôlego.

— Estou indo embora, Tobias. Estou cansada, e daqui a pouco já amanhece. A Lúcia deixou que eu dormisse aqui na fazenda e…

— Madrinha! – Disse Tobias, alto e sério. – O Fred te mandou essa carta.

 

 

Capítulo 6

Querida, Anne

Talvez esta não seja a melhor forma de lhe falar. Talvez o melhor fosse conversarmos frente a frente… É o que eu desejo, se assim você também desejar. Mas preciso lhe falar por meio dessa carta. Receio não ser capaz de dizer tudo o que desejo se estiver olhando em seus olhos. Estou me repetindo… Se bem me recordo, você sempre gostou de ler, sobretudo cartas, então espero que leia essas palavras com carinho e atenção.

Sei que muito tempo passou, mas eu tenho amado você, somente a você, desde que nos beijamos pela primeira vez. Na verdade, meu amor é ainda mais antigo…

Não posso mais me calar e silenciar meus sentimentos. Preciso saber se ainda podemos ter um futuro… juntos. Sei que você não está noiva do seu primo, e você precisa acreditar em mim, um namoro entre mim e Luísa é inconcebível. É verdade que saí algumas vezes na companhia dela e de alguns amigos, e que talvez eu tenha sido displicente em permitir comentários ligando meu nome ao dela, mas eu estava tão magoado e com o orgulho ferido pelo seu “casamento” iminente, que me deixei levar pela situação. Não foi o mais certo, peço que me desculpe. Entretanto, você não poderia nem mesmo pensar na possibilidade de um envolvimento meu com a Luísa! Ainda que não exista um futuro para nós dois, Anne, ainda que você não me queira mais em sua vida, eu pelo menos poderei guardar as lembranças do nosso amor. Envolver-me com uma pessoa tão próxima a você mataria toda e qualquer possibilidade de haver um “nós”. Sei disso. Como também sei que eu não deveria ter acreditado nas fofocas sobre você e o William. Nesse caso, meu ciúme falou mais alto. William sempre foi o seu par ideal, e eu sempre o invejei por isso.

Eu nunca te esqueci. Nós conhecemos o amor nos braços um do outro! Como eu poderia sequer pensar em te esquecer?

Se já não sentes mais nada por mim, destrua essas folhas e esqueça as minhas palavras. Em breve, irei embora, e você não mais me verá. Mas, se ainda restou algo do nosso amor, venha me encontrar. Sou metade agonia, metade esperança! Encontre-me. Agora mesmo! Você sabe o lugar.

Fred.

***

 

O sol dava os primeiros sinais do lindo dia que estava para nascer enquanto Anne corria até a baia para pegar Marajó. Não podia perder tempo tentando manobrar o carro no tumulto do estacionamento da festa, e a égua era a melhor companhia para o que ela precisava fazer. Boa amazona que era, Anne nem selara o animal. Rumou para o lugar em que ela tinha certeza de que encontraria Fred, com os cabelos ao vento e o coração disparado.

Fred estava encostado no jambeiro, o lugar deles, palco de tantos encontros apaixonados. Sorriu ao ver Anne descer da égua.

— Você veio sem selar a Marajó, eu cheguei aqui de moto. Parecemos saídos de um conto de fadas moderno. – Envergonhado pela fala espontânea, Fred emendou – Só não sei sobre o final feliz. Se você está aqui, agora, então leu a minha carta…

Ele deu um passo à frente. Anne o contemplava, imóvel.

— Sei que nós temos muito que conversar, mas ver você aí, parada, sem dizer uma única palavra, está me assustando. – Disse Fred.

Anne se aproximou dele, quase podia ouvir seu coração. Sentia em seu rosto a respiração quente de Fred, que aguardava ansioso pelo próximo passo dela. Anne tocou os lábios dele suavemente com seus dedos, em um gesto que dizia não serem necessárias palavras.

Ela o beijou, no início foi tão delicado que parecia um sonho. E então ele a enlaçou, com toda a fúria que há tempos ele desejava. Anne estava ali, nos braços dele. Eles teriam um futuro, teriam um final feliz.

***

 

Eles se tornaram novamente inseparáveis. Queriam recuperar o tempo perdido, mas talvez uma eternidade não fosse suficiente para aplacar a saudade que tinham um do outro. A maior opositora ao casal era D. Glória, mas esta já não tinha o poder de fazer mais nada para atrapalhar o romance. Anne estava decidida, e nada nem ninguém a faria mudar de opinião. Havia chegado a sua vez de ser feliz, e ela seria.

— Mas um casamento, assim, tão rápido!? – Dizia D. Glória, aos prantos – O que as pessoas vão dizer? Por acaso você está grávida daquele sujeito?

— Aquele sujeito, a senhora goste ou não, em breve será meu marido. Não me importo com o que as pessoas vão falar. Ninguém, a não ser eu mesma, deve ter o poder de decidir a minha vida. E não, madrinha, não estou grávida. Embora um filho esteja nos meus planos para um futuro não muito distante. Eu não conheci o Fred ontem, a senhora sabe…

— Não posso concordar com esse casamento. E o seu pai, o que acha? Aposto que também não concorda! – Interrompeu D. Glória, imponente.

— É uma pena. Mas não preciso da sua permissão, embora me deixaria muito feliz ter a sua bênção. E o mesmo vale para o meu pai. – Anne falou, se preparando para sair da casa de sua madrinha. – Aqui está o convite do casamento, caso queira ir. Mas por favor, vá somente se for para compartilhar da minha felicidade.

 

***

 

Planejaram um lindo, porém simples, casamento no campo. A cerimônia realizada pelo juiz de paz seria no final da manhã,  seguida por um grande almoço ao longo da tarde. Tudo estava muito bonito, o altar e as cadeiras foram colocados próximo ao pomar, e a decoração ficou a cargo de Lúcia e Anne, que escolheram as flores pessoalmente. D. Glória e Dr. Walter anunciaram com dias de antecedência que não compareceriam. O pai da noiva achara um ultraje uma Elias se casar em uma cerimônia tão simplória e com um noivo sem sobrenome. A madrinha não se conformava em não guiar os passos da afilhada e tentara, em vão, usar de chantagem para fazer Anne mudar de ideia. No dia do enlace, entretanto, os dois acharam um lugar entre os convidados e observaram a cerimônia, tentando, em vão, não serem notados.

Elisabeth e Mariah participaram da festa, assim como William e sua então namorada, Luísa. Estavam todos muito felizes por Anne e Fred.

De longe, Anne observava toda a movimentação de seu casamento. Como esperou por este momento! Queria olhar tudo e todos com atenção antes de fazer o que tinha de fazer, pois sabia que, a partir daí, viveria um sonho. Depois, talvez a emoção a fizesse vacilar, mas aqueles segundos olhando tudo sem ser vista eram apenas dela.

Fred esperava ansioso no altar. Apesar de inquieto, mal podia conter a alegria de finalmente se casar com a mulher que sempre amou. Mas um bilhete trazido por Tobias lhe tirou o sorriso dos lábios. Da última vez que recebera um rascunho de Anne, sua vida perdera o rumo. Resolveu abrir sem demora para saber do que se tratava.

“Fred, desculpe… pelo atraso.”

O noivo ergueu os olhos, Why Worry [2] começou a tocar quando ela chegou, linda e natural como sempre, em uma charrete. Anne estava ali, a poucos metros de se tornar sua esposa, no lugar em que se conheceram e se apaixonaram, sob o brilho do sol e o perfume da natureza.

O casamento correu simples e sincero como o amor dos dois, que resistiu ao tempo e estava pronto para ser vivido. A noiva, em seu vestido rosa-claro, usando poucas joias e com os cabelos soltos, caminhara lentamente até o seu amado noivo. Fred segurou as mãos de Anne, olhando em seus olhos. Respiraram fundo e sorriram. Era o momento perfeito. Estavam prontos para serem felizes lado a lado.

 

 

Epílogo

Alguns meses depois…

Anne despertava preguiçosamente sob o olhar apaixonado de Fred. Já estavam casados havia algum tempo, mas ela não podia deixar de se surpreender com o marido a analisando coberta pelo sol que começava a iluminar o quarto.

— Fred! Está velando o meu sono de novo? – Perguntou Anne, tentando ajeitar o cabelo desgrenhado.

— Um marido não pode admirar o sono de sua linda esposa? – Respondeu e acariciou o rosto de Anne. – Essa é a minha parte favorita de todas as manhãs.

— A favorita, tem certeza? – Anne perguntou, se aproximando e lhe beijando suavemente. – Devo ter me enganado…

Fred sorriu. Anne sabia como começar bem o dia. E ele a amava tanto, que todos os seus dias com ela eram como se fossem o primeiro.

— Querida, talvez fosse melhor nós nos levantarmos. Daqui a pouco você tem trabalho, esqueceu? – Disse Fred, mas sem se esquivar de Anne.

É preciso amor em vez de ouro… [3]Cantarolou Anne, preguiçosamente.

Fred a beijou. Anne era uma criatura da natureza, simples com o mesmo aroma das rosas que nascem sem serem plantadas. Pela manhã, ele a amava como amava o campo e as frutas que são colhidas no pé. À tarde, ele a amava como se ama o pôr do sol, esplêndido e inigualável. Já à noite, o brilho dela fazia inveja à lua e às estrelas, e ele a amava como nunca foi capaz de amar ninguém. Amava Annie por ela ser dele e só dele, pela história que eles compartilhavam, pelos erros e pelos acertos. E ela era linda, por Deus, como era!

Anne nunca pôde resistir à paixão que sempre sentiu por Fred. Pegava-se em vários momentos tentando imaginar como seria viver com ele, ser sua mulher todos os dias e nunca, nem por um instante, conseguira chegar nem perto do que vivia com ele agora, tantos anos depois de terem ficado juntos pela primeira vez.

Fred era uma força da natureza, era como o sol da manhã, que acaricia a pele, e a brasa, que a queima. Era como cavalgar a toda velocidade, de olhos fechados e sem ter medo de cair. Seus beijos eram como morder uma fruta do pomar sem se preocupar, só pelo prazer de se lambuzar. Não sabia como tinha vivido tanto tempo sem o calor do corpo dele, do cheiro inebriante, do jeito viril e, ao mesmo tempo, tão doce e companheiro de Fred. Sabia, apenas, que ficariam juntos, sempre juntos, se amando e tendo prazer em dividir a vida um com o outro.

— Anne, minha amada, Anne. Sabe que sou seu, de corpo e alma, não sabe? – Perguntou Fred, os dois corpos ainda incapazes de se desgrudarem. – Procurei seu rosto em todas as ruas.[4]Você é meu começo e meu fim. Sabe disso, não sabe?

Anne olhava, surpresa e maravilhada ao mesmo tempo, para Fred. Ele era um homem apaixonado, ela tinha certeza, mas estava especialmente romântico naquele dia.

— Eu sei. Eu te amo, Fred. Você afugentou meus medos impacientes e deixou meu céu azul de novo.[5]

— É impressão minha ou estamos mais românticos hoje do que nunca?! – Fred disse, ligeiramente emocionado. – Sinto algo diferente no ar, só não sei bem explicar o que é.

— Estou grávida, Fred. – Disse Anne, simplesmente.

— Você… Nós… – Fred não foi capaz de dizer nada muito coerente. Ele a aninhou em seus braços e beijou o alto de sua cabeça.

Teriam um filho. Ou uma filha. Ou os dois, quem sabe? Ela levantou os olhos até os olhos de Fred.

— Você está feliz? – Perguntou Anne.

— Felicidade é pouco!

— Teremos o nosso final feliz, enfim. – Disse Anne.

— Não, querida. Nossa vida está apenas começando.

 

 

 

[1] Minha porta estava aberta

A segurança foi deixada pra lá

Mas foi só o meu coração que ficou partido

(…)

Agora é passado, a última chamada para o álcool

As lembranças do passado estavam aqui e se foram

O patrão finalmente nos pagou

Os jazzistas em cetim já guardaram as cornetas

E nós estamos do lado de fora deste paraíso

Parecendo tão acabados e estragados

Como um mendigo do Bovery

Quando ele finalmente percebeu que a garrafa está vazia e que não sobrou nada.

Eu não sei como aconteceu

Tudo foi tão rápido

Tudo o que eu posso fazer é me entregar a você

E a seu último truque.

 

– Your Latest Trick. Dire Straits. Fonte: letras.mus.br

[2] Dire Straits.

[3] Love Over Gold, Dire Straits.

[4] On Every Street, Dire Straits.

[5] Why Worry, adaptado. Dire Straits.

 

 

 

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[…] está lindíssimo (sou suspeita, mas vocês podem acreditar em mim mesmo assim) e inclui o conto “Anne”, versão moderna e interiorana de Persuasão, de Jane […]

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[…] uma óbvia influência e inspiração em Jane Austen. Eu, inclusive, fui fanfiqueira de J. A. neste e neste […]

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