Não se deixe enganar pelo título: Livro das donas e donzelas (1906), de Júlia Lopes de Almeida, é um apanhado de textos da autora que falam de temas variados, alguns deles ligados ao feminismo. Estou cada vez mais apaixonada pela inteligência e intelectualidade da autora, que foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras, no entanto preterida a ocupar uma das cadeiras simplesmente por ser mulher. Compartilho abaixo um dos textos que mais gostei do Livro das donas e donzelas. O melhor de tudo: você pode ler o livro na íntegra clicando aqui ou baixando o e-book (também gratuito) na Amazon.
“Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la.
A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.
Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde o rapazio de uma aldeia próxima passava para a escola.
A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.
Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se abalançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho?
Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois… Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!
Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?
Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola.
Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela condiscípula de rosto franzido e cabelo nevado.
No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.
As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente…”