[DIÁRIO] RACHEL DE QUEIROZ: SOBRE O AMOR E A ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

 

Raquel de Queiroz nasceu em Fortaleza-CE em 17 de novembro de 1910. Foi escritora, jornalista, tradutora e a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 5 (eleita em 04/08/1977). Em 1993, foi a primeira mulher laureada com o Prêmio Camões. Traduziu grandes clássicos da literatura mundial, incluindo a primeira versão em português de Mansfield Park, de Jane Austen (1942), O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (1947) e Cranford, de Elizabeth Gaskell (1946).

 

Leia também:

Resenha de O Quinzede Rachel de Queiroz

As traduções de Rachel de Queiroz na década de 40 do século XX, de Priscilla Pellegrino de Oliveira

 

Google comemora os 107 anos de Rachel de Queiroz.

 

Para celebrar o nascimento da escritora, falecida em 4 de novembro de 2003, deixo abaixo dois textos de sua autoria: a crônica Amor e o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Rachel de Queiroz é, para mim, uma grande inspiração como profissional das letras e como pessoa. Foi uma mulher batalhadora e se fez respeitar em seu meio. Um fato sobre sua vida que me fez pegar, definitivamente, o exemplar de O Quinze da estante e devorá-lo em um único dia foi uma curiosidade contada pela também escritora Lurdinha de Leite Barbosa em entrevista ao Globo News Literatura que falava sobre o centenário da seca de 1915, retratada no livro de Rachel de Queiroz. Lurdinha conta que O Quinze, na época de sua publicação, recebeu elogios de vários escritores consagrados; Graciliano Ramos, inclusive, ficou impressionado com a qualidade de uma escritora tão jovem. Entretanto, no Ceará, a recepção do livro não foi muito boa. Havia um poeta que fez severas críticas ao Quinze, falava inclusive que o livro havia sido impresso em papel de má qualidade etc. O poeta chegou até sugerir que outra pessoa tivesse escrito o livro, talvez o pai de Rachel de Queiroz ou um outro escritor, chamado Benito de Carvalho (imagina se uma mulher, ainda mais uma mulher jovem, ia escrever um livro maravilhoso daqueles?!). Como as críticas vindas do sul eram ótimas, o tal poeta lançou as suspeitas sobre a autoria do Quinze em notas anônimas. Rachel de Queiroz, obviamente, ficou bastante revoltada com os boatos. Em um encontro entre ela e o poeta, quando o homem a cumprimentou com um aperto de mão, ela chegou-lhe ao pé do ouvido e disse: “eu sei que é você que anda escrevendo as notas. Eu não lhe dou uma surra porque não sou Henriqueta Galeno (outra escritora) que bate em homem. Mas eu sou mais forte do que você e maior e eu posso lhe dar uma surra.”  Achei o causo maravilhoso e desde então admiro ainda mais a escritora pelo ato de bravura em defender a sua obra.

 

Amor, de Rachel de Queiroz

Outro dia liguei o rádio e ouvi que faziam um concurso entre os ouvintes procurando uma definição para amor. As respostas eram muito ruins, até dava para se pensar que nem ouvintes nem locutores entendiam nada de amor realmente; o lugar-comum é mesmo o refúgio universal, que livra de pensar e dá, a quem o usa, a impressão de que mergulha a colher na gamela da sabedoria coletiva e comunga das verdades eternas. O que aliás pode ser verdade.

Mas a ideia de definição me ficou na cabeça e resolvi perguntar por minha conta. Tive muitas respostas. A impressão geral que me ficou do inquérito é que de amor entendem mais os velhos do que os moços, ao contrário do que seria de imaginar. E menos os profissionais que os amadores __digo os amadores da arte de viver, propriamente, e os profissionais do ensino da vida. Vamos ver:

Dona Alda, que já fez bodas de ouro, diz que o amor é principalmente paciência. Indaguei: e tolerância? Ela disse que tolerância é apenas paciência com um pouco de antipatia. E diz que amor é também companhia e amizade. E saudade? […] Não. Afinal, o amor não vai embora. Apenas envelhece, como a gente.

A jovem recém-casada me diz que o amor é principalmente materialismo. Todos os sonhos das meninas estão errados. Aquelas coisas que se leem nos livros da Coleção das Moças, aqueles devaneios e idealismos e renúncias e purezas, está tudo errado. Quando a gente casa, é que vê que o amor não passa de materialismo. […]

Um senhor quarentão, bem casado, pai de filhos: “Amor, como se entende em geral, é coisa da juventude. Depois de uma certa idade, amor é mais costume. É verdade que tem a paixão com seus perigos. Mas você falou em amor e não em paixão, não foi?”
__ E de paixão, que me diz? __ Aí ele se fecha em copas. “Deixo isso para os jovens. Velhote apaixonado é fogo. E eu não passo de um pai de família.”

A mãe da família desse senhor: “Amor? Bem, tem amor de noiva, que é quase só castelos e tolices. Tem o de jovem casada, que é também muita tolice __ mas sem castelos. Complicado com ciúme, etc., mas já inclui algum elemento mais sério. E tem o amor do casamento, que é a realidade da vida puxada a dois. Agora, o amor de mãe… Você perguntou também o amor de mãe?”

Respondi energicamente que não: amor de mãe, não. Quero saber só de amor de homem com mulher, amor propriamente dito.
Diz o solteiro, quase solteirão, que se imagina irresistível e incansável: “Amor é perigo. Só é bom com mulher sem compromissos. […] O melhor é amor forte e curto, que embriaga enquanto dura e não tem tempo para se complicar. Aquela história de marinheiro com um amor em cada porto tem o seu brilho, tem o seu brilho”.

O pastor protestante diz que o amor é sublimar a atração entre os dois seres, é atingir a mais alta e pura das emoções. Não confundir amor com sexo! […]

Já o padre católico não elimina o sexo do amor. Explica que, pelo contrário, o sexo, no amor, é tão importante como os seus demais componentes __ o altruísmo, a fidelidade, a capacidade de sacrifício, a ausência do egoísmo. E é tão importante que, para santificar o amor sexual __ o amor conjugal __, a Igreja o põe sob a guarda de um sacramento, o santo matrimônio. E ante a pergunta: se tudo é assim tão santo, por que os padres não casam? O padre velho não se importa com a impertinência, sorri: “Nós nos demos a um amor mais alto. Casamento, para nós, seria pior que bigamia…”

E por último tem a matrona sossegada que explica: “Amor? Amor é uma coisa que dói dentro do peito. Dói devagarinho, quentinho, confortável. É a mão que vem da cama vizinha, de noite, e segura na sua, adormecida. E você prefere ficar com o braço gelado e dormente a puxar a sua mão e cortar aquele contato. Tão precioso ele é. Amor é ter medo __ medo de quase tudo __ da morte, da doença, do desencontro, da fadiga, do costume, das novidades. Amor pode ser uma rosa e pode ser um bife, um beijo, uma colher de xarope. Mas o que o amor é, principalmente, são duas pessoas neste mundo”.

(De “Cenas brasileiras”, in Coleção Para gostar de ler. São Paulo, Ática, 1995)

 

Rachel de Queiroz. Foto: Edu Simões (1997)

 

Discurso de posse de Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras

Sr. Presidente da Academia Brasileira de Letras,
Sr. Ministro da Educação e Cultura,
Representando o Sr. Presidente da República,
Sr. Ministro da Justiça,
Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro,
Sr. Governador do meu Estado do Ceará,
Demais autoridades presentes,
Meus senhores e minhas senhoras:

No oitão branco, batido de luar, da velha casa de fazenda, devagarinho vai-se abrindo uma janela, a que dá para o pequeno jardim fechado, onde há cravos, bogaris e uma laranjeira. A menina-moça, mais menina do que moça, debruça-se ao peitoril e procura a lua com os olhos. Logo a descobre, tão clara, daria para ler uma carta!

A menina assesta na lua, diretamente no disco da lua, os seus olhos que já são míopes. Suspira, mas é um suspiro diferente, satisfeito, consolado; a menina ainda não está na idade dos suspiros propriamente ditos, está na idade das imaginações e dos sonhos. E, de olhos fitos na lua, silenciosamente, mal movendo os lábios, vai murmurando para si uma reza, uma encantação – um poema? Um poema que é reza e encantação. Vai murmurando como se rezasse para a lua, e na verdade está rezando para a lua:

… Astro dos loucos, sol da demência
Vara, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!

Já reconhecestes na encantação rezada pela moça o poema inesquecível. E na adolescente que se tenta fazer bruxa daquele culto lunar, permiti que vos apresente a velha senhora de hoje tentando desvendar os seu laços antigos com o poema e com o altíssimo poeta.

…E assim fitando-a noites inteiras
Seu disco argênteo n’alma imprimi…
………………………………………………….

Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto que enlouqueci!

E a menina fitava a lua, fitava, esperando o transe, o rapto, o santo. Encandeava-se de lua, fechava os olhos, sentia sob as pálpebras o disco branco

…seu disco argênteo n’alma imprimi…
Argênteo… noctâmbulos… euros… caçoilas… flux… – e a própria palavra-chave do poema – plenilúnio – a menina as procurara diligentemente no dicionário, aquelas dificuldades parnasianas, traduzira-as, tirara-as do rol incompreensível de “abracadabra”, “abre-te Sésamo”… Incorpora-as todas à sua posse da língua, sentia-se rica e rara.

A noite branca era fria e a menina se envolvia toda no lençol, por sobre a camisola fina. E as cobertas arrastadas atrás de si davam-lhe o desejo de saltar a janela, descer pelo pátio claro onde, no areão vermelho, luziam chispas nas malacachetas.

… há pó de estrelas pelas estradas…
e ir seguindo o rumo do perfume dos aguapés na várzea

…eu sigo às tontas, cego de luz…
………………………………………………

…Por toda parte louco, arrastando,
O largo manto do meu luar…

Ficava assim até que cantasse o galo da meia-noite – os galos cantam cedo em noites de lua cheia – e então cerrava lentamente a janela e voltava à sua rede branca de varandas de renda, onde dormia e sonhava, os olhos brancos de lua, redizendo o poema até dormir com ele.

Foi essa a minha primeira e mais grave intoxicação poética. Tive outras depois, mais amenas, já vacinada pela leitura e pela experiência que aumentava.

O poema eu o descobrira por mim mesma, num volume já gasto por outra geração de moças – minhas tias. Naquela nossa casa onde se lia tanto, mas onde meu pai só gostava de Camões, Castro Alves e Guerra Junqueiro, e minha mãe sofria uma incompreensível falta de ouvido para os poetas – (o seu ídolo era Machado, mas na prosa!) – Raimundo ficou sendo o meu poeta particular, o meu misterioso, louco poeta particular.

Concentrei-me no plenilúnio. Acho que, como eu, há pessoas de um só poema, de um só poeta. Poetas, para elas, são como namorados, pode-se ter muitos, sucessivos, mas nunca muitos, simultâneos. Anos e anos fiquei fiel a Raimundo, até que descobri Manuel Bandeira e foi aquele alumbramento…

Depois – mas não estou aqui para vos contar os meus amores poéticos e sim a ligação íntima com que, milênios antes de sonhar com esta Casa e esta Cadeira, a menina-moça que eu era já se sentia presa ao seu Fundador.

Fundador e Patrono. Um escolhido pelo outro, o Patrono pelo Fundador. Alguns buscam o significado dessa escolha na analogia do ofício, digamos oficial, de ambos, juízes um e outro. (Circunstância que também a eles ligaria a quinta ocupante da Cadeira nº 5, tão chegada a juízes, filha, neta, irmã de juiz que é; e os ligaria igualmente ao quarto ocupante, o juiz maior de todos, já que alcançou o Supremo)… mas isso são divagações.

Juízes os dois, seria por isso que Raimundo escolheu como patrono o romancista Bernardo Guimarães? Bem, talvez não fosse a toga propriamente o elemento de união, mas a maneira de exercê-la, os contrastes entre a personalidade dos dois juízes, suscitando a atração do pólo positivo pelo negativo. O Juiz Correia veria no Juiz Guimarães aquilo tudo que ele não era, mas gostaria de ser. O juiz escravo da lei, quase neuroticamente escrupuloso, quem sabe sonhava em ser como o outro, o seu antípoda, boêmio irreverente que desafiava autoridades, recebia partes tocando violão, dava despachos em versos picarescos; meritíssimo dr. juiz municipal de Catalão Goiás, que – o caso é célebre – ao assumir o cargo, apiedado da mísera situação dos onze presos que esperavam julgamento na péssima enxovia local, convocou imediatamente um júri e, em rito sumário e irregular, os fez “absolver por unanimidade e libertar incontinenti”.

O tímido colega apreciaria com inveja o confrade irreverente, desdenhoso de escândalos; e trai essa simpatia ao escolher, como padrinho da sua Cadeira, dentro da constelação de grandes nomes nacionais, precisamente aquele que seria o seu antípoda, símbolo de todas as suas insubmissões sufocadas.

Naquele tempo de Bernardo Guimarães, era o Brasil uma espécie de província perdida, cuja capital se situava em Paris.

Sem propriamente renegar a pátria, o brasileiro dado às letras sentia-se como uma espécie de cidadão da Europa; se o corpo, o coração, prendiam-se aqui, o espírito pairava ao pé da velha civilização, cuja seiva hauria, em cujas tradições se alimentava.

Os que liam inglês eram byronianos; os francófilos – a maioria – juravam por Lamartine, Chateaubriand e Victor Hugo, deles tirando inspiração e modelo.

Bernardo Guimarães é verdade que tentou agir em área própria, usando cenários brasileiros, personagens brasileiros, discutindo problemas brasileiros. Mas não teve como fugir à onda romântica que, dentro dos debates sociais, proclamava obrigatoriamente a inocência dos humildes, defendia os fracos, anatematizava os vilões.

E, assim mesmo, combatendo embora a vergonha do cativeiro, ele não ousou enfrentar os tabus da época; fazia restrições racistas, como, aliás, as faziam todos os outros adversários da escravidão – piedosos, paternalistas, levados por sentimentos caritativos – mas nada igualitários. Por exemplo, no seu mais famoso romance A EscravaIsaura, escrito como libelo veemente contra a escravidão (e indiscutivelmente bastante superior ao célebre e lacrimogêneo Cabana do pai Tomás, de Mrs. Beecher Stowe), Bernardo Guimarães não ousa apresentar na heroína uma moça negra, como seria razoável. Razoável, talvez, mas inadmissível para o público de senhores e sinhás a que se dirigia. Isaura é branca, pelo menos na aparência, a sua pinta de sangue negro completamente disfarçada em sinais de beleza.

Só um Castro Alves se atreveria a celebrar o que modernamente chamamos a negritude; esse falava no negro de igual para igual, proclamava os padrões de beleza negros:

Lá nas areias infindas
Das palmeiras no país
Nasceram crianças lindas
Viveram moças gentis…

Para a sociedade brasileira de então, filhos de negros não seriam jamais “crianças” – eram crias e moleques… E o que dizer das “moças gentis”?

Mas Castro Alves foi um gênio, e gênios não se bitolam por padrões correntes, por mais imperativos. E o corrente eram os preconceitos que nem mesmo o nosso Bernardo Guimarães, embora pessoalmente rebelde e provadamente compassivo, pôde, como romancista, desafiar.

De Osvaldo Cruz, sucessor de Raimundo Correia, diz-se que ele entrou nesta Casa em obediência ao critério de convocação de expoentes, já que na sua admirável vocação de cientista (ele próprio se dizia “um modesto homem de laboratório”), não teve tempo para dedicar-se à obra literária.

Em verdade, ele entrou aqui como expoente – mas dentro de uma categoria muito rara – na especialíssima categoria de herói.

Há os heróis que matam – aqueles que eu certa vez, num assomo de petulância juvenil, ousei chamar “os grandes carniceiros da História” – Alexandre, César, Napoleão – e há os heróis cuja luta não visa a morte, mas a vida dos homens; cujas batalhas são de salvar, não de matar. São os heróis mais altos, cuja pura auréola os deve colocar no círculo superior dos bem-aventurados, no Paraíso.

Osvaldo Cruz foi um desses heróis angélicos; sua vida curta e generosa foi um só combate contra o inimigo invisível, o infinitamente pequeno, imolador de homens. Seu terreno de campanha o Brasil, sua arena especial a cidade do Rio de Janeiro, bela sempre, então como agora, mas perigosa para quem nela vivia, mortífera para quem nela chegava, com a febre amarela devorando uma cota impressionante de vidas desde os primeiros bafejos do verão.

O que foi essa luta, outros, antes de mim, nesta mesma tribuna, já a narraram superiormente; basta reler as palavras de Afrânio Peixoto, ao receber Osvaldo na Academia.

E a briga do herói não era só contra a peste, mas contra os interesses contrariados, a inveja, a ignorância; meu Deus, há interesses contrariados até quando se trata da recuperação de uma cidade, de um país!

Mas, purificado o Rio, a cidade de novo aberta, liberada da sua permanente quarentena, Osvaldo Cruz se transportou à Amazônia, numa cruzada contra a malária que dizimava os operários construtores daquela estrada de ferro de terrível memória, a Madeira-Mamoré. De passagem, ele expulsou a febre amarela da cidade de Belém do Pará, porto de grande movimento das frotas internacionais.

O que ainda teria feito por nós esse homem, se a morte não o derrubasse ainda em quase mocidade, aos 45 anos de idade – dá um pouco de vertigem pensar.

Em todo o caso, Osvaldo conseguiu comprimir em sua curta vida os desempenhos de muitas vidas, como se tivesse pressa, como se adivinhasse que a contagem regressiva das suas horas já começara, quatorze anos atrás, no momento em que ele assumiu, sob o título despretensioso de Diretor-Geral da Saúde Pública, a tremenda tarefa que o cobriu de glória.

Mestre Aloysio de Castro, sucessor de Osvaldo Cruz, era um exemplar, já em segunda geração, de um muito importante grupo de médicos, dos quais o “anjo” foi, sem dúvida, o seu ilustre pai, o Dr. Francisco de Castro.

Extremavam-se esses doutores no cultivo das belas-letras, no manuseio dos clássicos, no trato requintado do idioma, num gosto parnasiano do termo raro, da construção preciosa. Nos seus compêndios de medicina, a par do ensinamento meramente profissional, está sempre visível a preocupação do autor em produzir igualmente trabalho de fino lavor literário, graças à qual transcendiam da sua condição original de manuais médicos e se colocavam entre as obras de literatura propriamente dita.

Tinham eles o seu epígono não em outro médico mas em Rui Barbosa – o padrão das formas clássicas revividas. Haviam, aliás, herdado esse pendor dos grandes mestres da medicina francesa do século passado, cujos requentes de prosa escrita eram notórios – os Trousseuau, os Jaccoud, os Dieulafoy.

Guardo, do professor Aloysio de Castro, uma lembrança bem de acordo com a aura meio romântica que o cercava. Levou-me à sua casa a minha querida e saudosa Lota de Macedo Soares, a acompanhá-la em postulado de já nem sei que cruzada artística em que então se empenhava.

Apanhado de improviso – creio que Lota era suficientemente íntima da casa para lá chegar assim – o mestre nos recebeu, no seu salão, sentado ao piano, vestido num robe de cetim cor de vinho. E, interrompendo docemente as veemências de Lota, quis saber quem eu era, sorriu satisfeito ao se inteirar do meu ofício, e começou a tocar um pouco, para me pôr à vontade, creio. Foi tudo extremamente gentil e, para mim, inesquecível: o piano de cauda, sobre o qual havia retratos em moldura de prata, o salão em penumbra e o amável cavalheiro dedilhando delicadamente o prelúdio de Chopin.

Se houve, neste país, um homem de letras a quem não se pudesse taxar de alienado, como é de gosto dizer-se agora, ou de encerrar-se em torre de marfim, como no tempo em que ele fez a sua opção na vida, será esse homem aquele cuja saudade ainda choramos, de cuja Cadeira me acerco, apesar do direito que me dais, meio receosa de ocupá-la.

Cândido Motta Filho. Numa vida que, em termos humanos, pode considerar-se longa – quase oitenta anos – esse paulista inquieto fez de tudo e tudo fez bem, quer no plano intelectual, quer no político, quer no social. E se em todas essas atividades saiu-se com singular felicidade, é que recebera de nascimento dotes acumulados, sobressaindo entre eles aquela clara inteligência a par de um largo e muito humano coração.

Acompanhando-o na sua rica biografia, vemo-lo, mal saído da Faculdade de Direito, na posse do seu canudo de bacharel, tratar logo de ir diversificando os seus interesses; e ei-lo advogado, jornalista, político, professor.

E curioso é que, durante a vida inteira, se manteve fiel a esse leque de vocações. Fiel, exímio e vitorioso: o advogado e jurista chegando a Ministro do Supremo Tribunal Federal; o jornalista que começara escrevendo uma coluna judiciária e simultaneamente dirigindo a página de literatura da mesma folha, prosseguindo jornalista e literato até os dias finais, morrendo como membro da Academia Brasileira de Letras.

Político: o moço que se fizera eleger juiz de paz do bairro paulistano de Santa Cecília, atingiu a presidência do seu partido, o Partido Republicano. Note-se que, nesse ramo da política, a sua fé de ofício bastaria para encher com lustro mais de uma biografia.

Moço, foi auxiliar da cúpula do governo quando os seus detinham o poder, foi deputado estadual constituinte. Entre uma atividade e outra sentou praça nas hostes dos que fizeram a revolução constitucionalista de 1932, opondo-se de armas na mão à primeira fase da ditadura de Vargas.

Com o governo Dutra chegou a Ministro do Trabalho. E no governo Café Filho ocupou outra pasta, esta bem consentânea com os seus interesses e atividades mais autênticos – a pasta da Educação e Cultura.

Professor, iniciou-se na carreira de mestre no Patronato Agrícola do Estado; e, de escola em escola, alcançou a cátedra de Direito Constitucional, na gloriosa Faculdade de Direito de São Paulo.

Um outro apaixonado interesse de Cândido Motta Filho foi o problema, ou antes, o drama do menor abandonado. Aquele humano e grande coração em que falei acima muito cedo se voltou para esse tema angustiante, manifestando-se quer em estudos muito acurados, quer em ação direta. Na prática, envolveu-se de modo nada platônico, tendo chegado a Diretor do Serviço de Proteção de Menores do seu Estado.

Na teoria, além de vários escritos dispersos, publicados na imprensa, foi o autor de um livro importante, A defesa da infância contra o crime.

Mas não foi como jurista, nem como sociólogo, nem como homem de Estado, nem como jornalista de longo tirocínio – não foi por nenhum desses títulos exponenciais que Cândido Motta Filho entrou nesta Casa. Títulos que sobejamente lhe garantiriam o ingresso aqui – como a vários outros ilustres companheiros.

Cândido Motta Filho ocupou esta Cadeira n& ordm; 5, na Casa de Machado de Assis, graças à sua essencial condição de homem de letras, atividade que, a par das outras, exerceu com fidelidade, constância e talento. Caracterizava-se como escritor, além da lucidez e da originalidade do enfoque nos temas abordados, pela exposição clara e bem informada, aliada à preocupação estética da forma.

E, circunstância singular, esse escritor que se interessava indisfarçavelmente pelo dizer lapidar, pela boa linhagem vernácula da sua escrita, formou entretanto no bando iconoclasta da Semana de Arte Moderna, “representante da insubordinada geração de 1922” no dizer de Cassiano Ricardo, sendo mesmo um dos seus elementos mais atuantes, dentro do núcleo central do grupo, com voz na imprensa diária.

Muito já se tem dito sobre a Semana de Arte Moderna. Aqui desejamos apenas assinalar um aspecto curioso do movimento, que funcionou com muito mais ruído e conseqüências a posteriori; no momento da sua promoção, quase se reduziu às rodas inquietas da intelligenzia da capital paulista.

É o próprio Cândido Motta quem nos confessa a sua defasagem com a trilha revolucionária do movimento modernista, quando diz que “não sabia o que significava, em 1922, o modernismo, porque o movimento de renovação era feito com a cumplicidade de muitos que nunca saíram das regras acadêmicas”.

Mas, modernista ou não, sua obra de escritor não se interrompeu nunc; e, se a não podemos chamar de copiosa, é surpreendentemente variada, confirmando a condição básica de polígrafo que define o seu autor.

Ele fez biografias e comentários biográficos: a história da vida daquela fascinante personagem do Brasil da belleépoque, que foi Eduardo Prado, teve em Cândido Motta Filho o seu biógrafo definitivo.

Os estudos sociais, a interpretação de temas políticos receberam também a sua abordagem atenta, quer fosse a obra de Alberto Torres, quer a tentativa de explicação de Rui Barbosa, quer a singular mistura representada por Ocaminho das três agonias, estudo interpretativo de três entidades tão diversas entre si: o duro e fascinante homem de Estado que foi Feijó; o suposto maldito e na realidade o menino pateticamente genial, Álvares de Azevedo; e os mistérios do temperamento e vida da indecifrada esfinge do Cosme Velho – aquele que é o deus desta Casa – Machado.

Na crítica literária, que cultivou desde os verdes anos, através de uma ininterrupta atividade jornalística, e onde operou mais na postura de apreciador diletamente que na do árbitro e pontífice, temos o belo volume de anotações inteligentes, de descobertas muito pessoais e avaliação equilibrada, que são as Notas de um constante leitor.

Mas se eu tivesse que marcar uma preferência pessoal na obra de Cândido Motta Filho, indiscutivelmente me inclinaria pelos seus dois livros de memórias. O primeiro, Contagem regressiva cujo título é um achado tão feliz que por si só já valeria um volume; o segundo, de publicação póstuma. Dias lidos e vividos. “Dias lidos”, em vez de “idos” apenas, não valendo como simples trocadilho, mas depoimento confessional de uma realidade.

Esses dois meio desordenados depoimentos, escritos sem preocupação cronológica nem ligação formal de episódios, neles está o retrato do homem, sua essência particular, seus sentimentos íntimos em simbiose com as lembranças.

A própria seleção das memórias, o espírito que preside à sua escolha, o que o memorialista conta e omite, o que recorda e o que esquece – deliberada ou involuntariamente – dão com largura para se fazer uma ideia da persona, da criatura, que nos é tão viva e às vezes adoravelmente ressuscitada pelas recordações.

Livros feitos sem método preestabelecido, indo e vindo do menino ao homem, do velho ao rapaz, e que nos revelam, de forma positiva e esclarecedora, o que seriam os ideais humanos, as concepções filosóficas e sociais de Cândido Motta Filho – a par de suas preferências artísticas, literárias, estéticas. E tem-se ali igualmente uma galeria preciosa de contemporâneos seus, retratos feitos às vezes num traço único – grandes figuras do Brasil, flagrantes de personalidades mundiais com quem o narrador teve contacto.

Na verdade, pode-se dizer que Cândido Motta Filho não se conta muito, conta mais os outros; e é através dos outros que com freqüência se revela. Até mesmo nas lembranças de infância, a gente enxerga o mundo do seu tempo através dos olhos do menino; e é essa visão do mundo, nos voltando em ricochete, que traduz e explica o garotinho tímido, canhoto e de frágil saúde, perseguido pela solicitude inquieta dos seus, sempre receosos de que o garoto “não vingasse”.

Vingaria sim, vingaria magnificamente, conforme o testemunho de sua bela vida, que afinal logrou alcançar quase oito décadas. Vingaria; vingou.

Fui conhecer melhor Cândido Motta Filho depois que ele, aposentado do Supremo, deixou Brasília e veio se fixar no Rio. Nosso ponto de encontro era a sala do escritório de nosso irmão José Olympio, editor de nós ambos. Motta, sempre discreto, falava e sorria – aliás mais sorria que falava, quando a roda era grande. Nos grupos de dois e três é que se expandia, brincava, contava casos e defendia pontos de vista.

Certa vez, eu saía apressada de um dos almoços na Editora para a sessão do Conselho Federal de Cultura, que começa às duas horas, e o Ministro Motta filho ofereceu levar-me no seu carro. Dávamos a volta pelo Parque do Flamengo, quando veio à nossa conversa o assunto netos, meus e dele, todos maravilhosos, claro. E de repente ele se pôs a explicar, meio complicado, a vocação profissional do seu neto Nélson, o Nelsinho.

– Adora música, principalmente a popular, desde pequeno, é queda irresistível…

Tive a impressão de que, de certa maneira, o avô justificava o rapaz ante os possíveis preconceitos elitistas da senhora literata. E protestei com veemência:

– Mas eu sou fã do Nelsinho! Fã de firma reconhecida! Tenho os discos com as músicas, não perco a coluna dele no jornal, e sempre que posso o vejo na TV! É um doutor em música popular. E, além disso, Ministro, ele é lindo!

O Ministro visivelmente inchou o peito naquele orgulho inocente que só os avós conhecem; os seus olhos luziram, seu sorriso clareou mais, e ele acabou concordando, beatífico:

– Sim, é lindo!

E a concordância em torno daquele neto e daquele adjetivo selou uma cumplicidade afetuosa entre nós. Daí por diante, mal me via, ele abria o sorriso, adiantava-se para me apertar a mão e, assim que apanhávamos um local para conversar sossegados, íamos discutir, conspiratoriamente, não de inquietações políticas ou novidades das letras – mas, doce e consoladamente, de netos.

4/11/1977

 

 

Referências:

 

ABL: Perfil da Acadêmica e Discurso de Posse

Wikipédia: Rachel de Queiroz

Amor, uma crônica de Rachel de Queiroz (Site Conti Outra)

Revisita ao ‘O Quinze’ marca centenário de uma das piores secas de todos os tempos. Globo News Literatura (20/03/2015).

 

 

 

 

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